A DIVDA DOS FARAS
ALGUNS supostos amigos do movimento negro parecem empenhados em transformar a luta anti-racista numa cruzada contra a inteligncia. As novas bandeiras que, importadas dos EUA, se exibem nas manifestae manifestaess da negritude negritude parecem parecem desenhadas desenhadas de propsito propsito pelos racistas racistas brancos para expor ao ridculo o povo negro e desmoralizar um movimento cuja inspirao primeira , no fundo, nada mais que uma exigncia elementar de justia. A exigncia de reparacoes o exemplo mais visvel. Movidos pela oratria de intelectuais esquizofrnicos, os negros agora exigem uma indenizao dos bisnetos de seus antigos senhores, mas ao mesmo tempo gabam-se de ser descendentes dos faras, que escravizaram dezenas de povos durante quinze sculos. sculos. No vejo como podero escapar da pergunta: — Por que vocs no pagam primeiro o que devem aos judeus? Em segundo lugar, a escravido no foi introduzida na frica pelos brancos europeus, mas, muito antes da chegada deles, pelos muulmanos, entre os quais, por ironia, era grande o nmero de negros e mulatos1; e, antes ainda do domnio muulmano, escravizar as tribos vencidas j era costume generalizado entre vrios povos africanos, que mais tarde vieram a vender os prisioneiros a rabes e portugueses. curioso, portanto, que a exigncia de reparaes seja jogada seletivamente em cima dos brancos europeus. Mais curioso ainda que essa exigncia venha predominantemente de negros islamizados, esquecidos de que no s os muulmanos j praticavam a escravido negra antes dos europeus, mas de que muitos pases islmicos continuaram a pratic-la at o sculo XX. Mas a teoria das reparaes sugere ainda uma outra pergunta mais incmoda: quanto de sangue negro ser preciso ter para ser admitido na fila do caixa? O mulato — cinqenta por cento negro, cinqenta por cento branco — paga ou recebe? O filho de mulato com branca, ou de branco e mulata — 25 por cento negro, 75 por cento branco — trs quartos devedor e um quarto credor? Ou cada qual poder passar de devedor a credor por deciso de arbtrio prprio, bastando “assumir a negritude” para que se opere esse milagre? Fazer justia, nesse caso, quase impossvel, sobretudo num pas que durante os cinqenta anos do Segundo Imprio foi governado por uma elite mulata, cujos descendentes at hoje ocupam os primeiros lugares na administrao pblica e no panteo dos notveis. Uma vez erigida em lei a teoria das reparaes, at o presidente da Repblica [= FHC, na poca da publicao do 1 Fato de enorme enorme importncia importncia histric histricaa e simblic simblica, a, o primeiro primeiro ouvinte ouvinte convertido convertido pela pela pregao de Mohammed Mohammed foi um negro, o escravo nbio Bilal; o qual, supliciado logo em seguida pelos adeptos da religio tribal antiga, se tornou o primeiro mrtir do Islam.
texto] e o Dr. Roberto Marinho entrariam na fila dos recebedores, se o que se diz sobre suas origens raciais exato. E os pais brancos de filhos mulatos — inclusive eu mesmo, para quem no sabe — teriam de pagar tudo de novo sob a forma de imposto, aps terem sustentado, vestido e paparicado os safadinhos at maioridade? Nunca vi coisa mais doida. Na medida em que adere servilmente e sem exame crtico a certas modas, o movimento negro arrisca tornar-se, alm disso, um instrumento a servio do imperialismo cultural norte-americano:
(a) Se a importao de palavras um processo normal de desenvolvimento de uma lngua, a importao de conotaes estrangeiras para palavras locais sinal daquela sujeio psicolgica que favorece a escravizao cultural. Em ingls, nigger pejorativo, s usado por brancos, e os negros por isto exigem a qualificao blak . Nada mais justo. Pretender introduzir a mesma relao semntica entre “preto” e “negro” francamente artificioso. Num pas onde se denominou uma Igreja de Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos, onde “pretinha” e “pretinho” so formas de tratamento afetuoso entre namorados, onde por outro lado os senhores de engenho cuspiam desprezo na “negralhada” e diziam que “negro que no caga na entrada caga na sada”, pretender que negr seja adjetivo mais nobilitante do que pret impor nossa semntica usual uma prtese deformante moldada no padro de uma lngua estrangeira, e sem nenhuma equivalncia etimolgica ou funcional. A nica diferena semntica que h, no portugus do Brasil, entre “preto” e “negro” que a primeira dessas palavras de uso mais popular, e a segunda mais literria, ou, conforme o contexto, um pouco mais pedante — uma relao profundamente diversa daquela que h em ingls entre nigger e blak . Torcer a semntica brasileira para adapt-la ao ouvido norte-americano pura macaquice, colonialismo cultural descarado. Se popular o mesmo que pejorativo, os homossexuais deveriam exigir a troca imediata da gria gay pelo termo culto “uranista”, ou mesmo, talvez mais elegantemente, “pederasta”.
(b) O uso brasileiro distinguiu sempre o branco, o negro, o mulato, o pardo. Somos um pas de mestios, onde a identidade racial se dissolve numa nvoa de ambigidades — de que d testemunho a profuso de sinnimos de “mulato” que h em nossa lngua —, e s dizemos que um sujeito pret quando de raa pura. J os racistas norte-americanos, rejeitando com nojo a mestiagem, catalogam como blak ou nigger quem quer que tenha uma gota de sangue negro, mesmo sob pele clara. Exigir que mestios — mulatos e pardos de todos os matizes — “assumam a negritude” querer que vistam a falsa identidade de raa pura que numa nao racista lhes foi impingida pelos brancos.
Novamente, colonialismo cultural. Em matria de raa, to absurdo o mulato “assumir-se como negro” quanto declarar-se branco. Para piorar, a maioria dos mestios aqui tem umas gotas de sangue ndio, e assumir a negritude nestes casos uma falsidade se, no mesmo ato, no se assume tambm a indiitude. A negritude, como se v, no est na cor da pele, mas na cor ideolgica; e, na turva atmosfera da retrica ideolgica, todos os gatos so pardos. Pardos? Mil perdes. So blak .
Mas no tpico da religio que as reivindicaes do movi mento black chegam ao cmulo do absurdo. Por que um branco deve tomar os cultos africanos como elevadas expresses da cultura negra, se a maioria dos negros que h no mundo se converteram ao Islam e hoje abominam esses cultos como idolatria politesta? Um sheikh negro, pregando numa mesquita de Adis-Abeba ou de Nova York, lhes dir que o culto afr a desgraa da raa negra, um resduo de tribalismo que deve ser sepultado no esquecimento como os rabes sepultaram os seus cultos pr-islmicos. Alis no preciso ir to longe. A toda hora vejo na TV pastores evanglicos negros e mulatos dizendo que umbanda e candombl so religies do capeta e apontando esses cultos como causas do milenrio azar da raa negra. Alguns apelam a um temvel argumento weberiano: E imaginvel um pas ri, prsper e ult gvernad pr pratiantes de vdu? A enmia da Suca m a religi d Haiti? Em segundo lugar, os negros j deveriam ter notado que, entre os intelectuais brancos amigos do candombl, a maioria, significativamente, composta de ateus, como o prof. Darcy Ribeiro, que como tais no crem em demnios tanto quanto no crem em Deus, e no podem ver essas manifestaes religiosas seno pela sua epiderme esttica, pelo seu valor museolgico ou pela sua utilidade poltica (j na dcada de 30 o Comintern instrua os militantes comunistas para que se aproximassem dos movimentos de minorias raciais e neles infiltrassem o discurso da luta de classes — programa que entre ns foi cumprido risca pelo Dr. Florestan Fernandes, nisto consistindo o essencial de sua contribuio cientfica ). Em suma, ser amigo da “cultura negra” no o mesmo que ser amigo ds negrs: ser mais amigo de uma idia abstrata que dos negros de carne e osso aos quais ela faz muito mal. Por outro lado, nada mais que justo que enfim se reconhea o Brasil como um pas racialmente mulato ou mesmo negro ( eu mesmo contribu para essa finalidade ). Mas, se isso implicar a aceitao do primado da ultura afr sobre a europia, judaica e crist na educao nacional — ou mesmo o seu nivelamento com elas — , ento s restar aos brancos, negros e mulatos inteligentes carem fora antes que o novo Estado os obrigue a seguir, em vez do Papa, um Papa Doc. Os intelectuais de elite — brancos, negros ou mestios — so culpados de cultivar no povo negro, por oportunismo ou perversidade, iluses quase demenciais quanto ao valor da cultura afr. A contribuio bsica dos
negros ao Brasil foi dada atravs do trabalho escravo, que construiu a riqueza da Colnia e do Imprio: foi uma contribuio material, no cultural. E os elementos de cultura africana que se introduziram na nossa mentalidade, se so um fato histrico e antropolgico inegvel, tm um valor, para dizer o mnimo, duvidoso. Pois se os negros africanos so de fato, como proclamam, descendentes da classe dominante egpcia, ento ao terem seus primeiros contatos com o dominador muulmano ou europeu j eram um povo decadente, enfraquecido, reduzido das antigas glrias imperiais disperso tribal e impotncia de uma vida diminuda: que grande contribuio cultural podiam dar ao dominadores muulmanos ou cristos, que ento iam alcanando o mximo esplendor de suas respectivas civilizaes? O fato de nos repugnar a espoliao escravagista que foi a origem da riqueza nacional no deve nos levar a tentar oferecer por ela uma compensao enganadora sob a forma de lisonjas demaggicas — isto resulta apenas em substituir, ao abuso econmico, o ludbrio psicolgico. Algum tem de dizer aos negros a verdade: a verdade que todos os ritos yorubas no valem uma pgina de Jalal-ed-Din Rmi e a histria inteira do samba no vale trs compassos de Bach. A verdade que a contribuio cultural das religies africanas ao mundo perfeitamente dispensvel, to dispensvel que mais de metade dos negros que h no mundo vive perfeitamente bem sem ela e jamais trocaria a lngua rabe por um dialeto yoruba ou a cincia europia pelas receitas de macumba do Sr. Verger. A verdade, amigos negros, que vocs perderam a corrida da histria — pagando talvez pelas maldades cometidas na poca do esplendor faranico —, se dispersaram e se enfraqueceram, e acabaram sendo escravizados e vendidos aos portugueses pelos mesmos semitas — pois rabes so semitas — em cujo lombo desceram o chicote sem d no tempo da construo das pirmides. No existe povo bom: e vocs, se foram escravos por trs sculos aps terem sido senhores de escravos por mais de um milnio, devem agradecer a Deus pela clemncia do seu destino. Perto dos judeus, escravizados por egpcios e babilnios, explorados por muulmanos, expulsos daqui para l pelos cristos e finalmente dizimados pelos nazistas, vocs so uns sortudos. E olhem bem: em cada nao por onde passaram, os judeus deixaram, em troca dos sofrimentos obtidos, um legado cultural infinitamente mais precioso do que o carnaval, o samba e outras bossas... Em terceiro, a idia mesma de “religies negras” uma contradio intrnseca. Se qualquer um, branco, ndio ou nipnico, pode converter-se s religies africanas mediante um simples rito de ingresso, ento fatalmente a expanso dessas religies — se vier a acontecer, o que improvvel — far com que logo percam qualquer vnculo com uma raa em particular e se tornem religies mundiais como o cristianismo ou o Islam. No Brasil, que de fato o nico pas do mundo onde as religies africanas se expandem, a maior parte dos seus seguidores j no constituda de negros e sim de
mestios, e a maior celebridade religiosa que os representa um branco francs: Pierre Verger 2. Supor que a expanso mundial da religio africana representar uma tardia revanche do povo africano sobre seus velhos dominadores brancos to ingnuo quanto o seria, dois milnios atrs, imaginar que a expanso do Cristianismo daria aos judeus a vitria sobre os romanos. A expanso, se acontecer, acarretar necessariamente uma desafricanizao e romper os vnculos entre e a religio e sua cultura de origem, tanto quanto ocorreu ao cristianismo. Se, ao contrrio, esses cultos timbrarem em conservar a pureza racial de seus fiis, incorrero por sua vez no delito de discriminao racial e sero condenados por toda parte3. 2 A propsito do sr. Verger, preciso lembrar que a ambigidade do seu personagem vai alm do simples fato de ser um branco a suprema autoridade da religio negra: o sr. Verger um ser bifronte, misto de antroplogo e pai-de-santo — uma posio que lhe permite mudar a clave de seu discurso conforme as demandas do momento, ora falando do culto africano com a liberdade de um espectador cientfico livre e descomprometido, ora com a autoridade de um porta-voz oficial. Essa duplicidade de papis por sua vez permite que ele desfrute do prestgio da autoridade religiosa sem ter de arcar com a concomitante responsabilidade. Os hierarcas das demais religies, se recebem a venerao e obedincia de seus fiis, por outro lado tm de responder, perante a sociedade, pelos pontos de sua doutrina que paream duvidosos ou extravagantes aos olhos dos no-crentes. Um rabino no se furtar a arcar com o nus de representar perante os gyim e defender valentemente o exclusivismo nacional que um dos princpios de sua religio e um motivo de irritao para os no-judeus. Um imm mussulmano no se furtar a fazer de sua pessoa um escudo contra as crticas que os cristos, judeus ou ateus tenham a fazer contra a poligamia ou contra a obrigao feminina de usar vus. Um padre catlico apostar sua honra e sua vida na defesa de uma moral sexual que os adversrios da Igreja acusam de repressiva e prejudicial sade. Nenhum desses sacerdotesest em posio de furtar-se s cobranas que os de fora possam fazer sua religio. precisamente essa a posio que o sr. Verger ocupa na sociedade brasileira. Ele ouvido como um representante autorizado de sua religio, mas, cobrado por alguma absurdidade ou feira que os outros enxerguem nela, pode sempre se furtar a uma resposta abrigando- se por trs de seu papel de observador cientfico, que permanece estranho ao seu objeto de estudo mesmo quando identificado a ele at a medula. Assim, por exemplo, no seu recente livro w. O Us das Plantas na Siedade Yruba ( Salvador, Odebrecht, 1995 ), ele nos d vrias receitas de mandingas usadas no candombl para matar pessas , sem que a ningum ocorra acus-lo de pregar uma religio homicida — pois afinal ele est falando como observador cientfico e no como porta-voz responsvel pela crena que prega. um privilgio que nenhuma autoridade religiosa deste mundo pode invocar. claro que essa ambigidade, embora cmoda e oportuna, no se deve a nenhuma premeditao maquiavlica urdida pelo sr. Verger, cuja honestidade pessoal creio estar acima de qualquer suspeita, mas sim uma conjuno de circunstncias que fazem da prpria cultura afro no Brasil um cadinho de todas as ambigidades, uma soldagem de todas as indefinies. Para piorar as coisas, a nenhuma autoridade religiosa deste mundo moralmente permitido ensinar a prtica de ritos sem que esteja persuadida da eficcia desses ritos. Um rabino no submeter meninos ao bar-mitzvah, ou um padre os submeter ao batismo, dizendo-lhes ao mesmo tempo que se trata provavelmente de ritos incuos, sem eficcia neste mundo ou no outro. Mas o carter peculiar de sua religio e a posio ainda mais peculiar que dentro dela ocupa permitem que o sr. Verger ensine os ritos homicidas ao mesmo tempo que deixa numa conveniente ambigidade as questes que uma conscincia religiosa s jamais deixaria de buscar esclarecer: sses rits funinam u n? S pratiads u n? Pois, se declaradamente no funcionam, sua religio uma farsa. Se funcionam, intrinsecamente homicida. Se funcionam e so correntemente praticados, j no se trata somente de uma doutrina homicida, mas de um stume hmiida generalizado e legitimado pela religio. Convenhamos que so questes incmodas. Mas por que conceder ao sr. Verger o privilgio de permanecer na indefinio ante essas perguntas, quando as demais autoridades religiosas so constan- temente cobradas at mesmo por violncias indevidas e sem relao com o dogma — ou mesmo contrrias a ele — que seus correligionrios tenham cometido no passado? Um pas onde um livro como o do sr. Verger faz sucesso entre os intelectuais e comentado em todos os jornais sem que ningum se lembre de discutir esses pontos realmente um pas que cultiva a inconscincia num canteiro de meias-palavras. 3 Alguns demagosos e intelectuais de miolo mole acreditam que se deve conceder aos negros o direito a uma espcie de discriminao compensatria — um tipo de discriminao que, por artes lgicas misteriosas, fica isento da pecha de racista. As pessoas que pensam assim aplaudem o ministro Edson Arantes do Nascimento quando ele proclama que
Na verdade, o apelo religio africana como arma de combate anticolonialista foi um simples expediente retrico, de efeito bem modesto quando comparado fora anticolonial do discurso islmico, transnacional e transracial4. Porque bvio que uma cultura expansionista s pode ser enfrentada em p de igualdade por outra cultura expansionista: os cultos locais, nacionais e raciais so fatalmente esmagados sob as rodas do carro da Histria, exceto quando se tornam expansionistas tambm e dizem adeus s razes, como o Islam disse adeus ao passado rabe para se tornar, hoje, uma religio de negros e polinsios5.
“negro s deve votar em negro” — um princpio seletivo que na verdade duplamente racista: primeiro, por selecionar os candidatos pela cor; segundo, por ser um princpio privilegiado, que s os negros tm o direito de alegar e praticar; pois se o branco recusar o voto sistematicamente aos candidatos negros, ou o judeu aos candidatos no-judeus, ser imediatamente acusado de racismo. De modo que o mesmo procedimento discriminatrio racismo em uns e no em outros, o que prova que alguns so mais iguais que os outros. 4 O dominador portugus j percebeu isso no tempo do Brasil-Colnia. Na Bahia os negros mals, de religio mussulmana, constituam uma comunidade culta e forte — mais culta que a classe dominante e ameaando tornar-se to forte quanto ela. Sua unidade atemorizava os portugueses, que por isto incentivavam os escravos a permanecer fiis a seus cultos de origem, para que no se islamizassem. Na revolta em que os mals chegaram a dominar a capital baiana, os seguidores do culto afr foram um brao armado que os lusitanos usaram para liquidar os revoltosos. Mas at hoje os nossos tericos do movimento negro no tiraram disto as concluses mais bvias. 5 Os rabes representam hoje no mais de 8 % da populao mussulmana.