MÚSICA ERUDITA BRASILEIRA
4
E
screver um panorama da História da Música Erudita ou de Concerto no Brasil é um desafio há muito acalentado. Diferente de outras produções artísticas brasileiras, a música ainda carece de estudos organizados com o objetivo de contar sua história e, principalmente, contextualizá-la perante o repertório consagrado da música ocidental. Essa vertente da produção musical brasileira por muitos é considerada como o último tesouro ainda por ser descoberto e verdadeiramente explorado da cultura do país. À exceção do célebre Villa-Lobos, e também de Camargo Guarnieri, pouco se conhece a respeito dessa imensa produção musical. Isso se dá tanto nos meios internacionais como, espantosamente, entre os próprios músicos brasileiros, que bastante sabem e executam Mozart, Beethoven e Brahms, mas que pouca informação têm de compositores brasileiros contemporâneos e mesmo de outros períodos. 5
Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios de comunicação e conhecida internacionalmente como símbolo da produção musical do Brasil do século XX, a música erudita ou de concerto ainda é um território inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos próprios músicos brasileiros. Diferentemente da produção de MPB, que abrange dos últimos anos do século XIX aos dias atuais, a música “clássica” no Brasil está ligada diretamente ao início da colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco séculos de transformações e adaptações culturais ocorridas no país. A respeito de como interagem na cultura brasileira essas duas realidades musicais complementares, citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 que bem exemplifica essa situação: “É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar de música brasileira corresponde a falar de música “popular” brasileira. Claro que a supremacia, em termos de difusão, da música popular sobre a música de concerto é um fenômeno mundial. O que torna o caso do Brasil específico é que os principais autores e intérpretes de nossa música popular desfrutam do status não apenas do carinho das massas, mas o afago da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica” da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos brasileiros, na área de música, são gente como Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes, por mais que possamos admirar e respeitar o talento desses compositores. As idéias dos astros da MPB é que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos formadores de opinião pública. Quando acontece um fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição presidencial é sempre repercutida pela imprensa com estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar. Não se trata aqui de atacar a música popular brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido pela música brasileira de concerto.”
6
Ao procurarmos os vários fatores a que se deve a atual situação de desconhecimento da história e da produção da música de concerto no Brasil, deparamonos com dois principais, que são a falta de programas editorais eficazes para a publicação de obras compostas no Brasil desde o século XVIII e o próprio desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações musicais em conhecer e programar esse repertório em seus concertos. Diante desse quadro, nada mais oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente, esta História da Música Erudita no Brasil, de modo multidisciplinar e em formato de revista. Para esta publicação elaboramos uma pauta onde subdividimos os assuntos em três grandes períodos históricos: do Descobrimento à Independência, do Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada por artigos de diferentes características. Há os artigos contextualizantes de um período histórico e que vêem a produção musical no âmbito sociológico, e há os que exploram a biografia dos principais compositores de cada período, tornando-se importantes verbetes para uma compreensão mais objetiva da biografia e produção de cada compositor ou período estético abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma revista de divulgação de cultura brasileira no exterior, tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos abordados, possa ter uma ambientação histórica e social na qual essa música foi produzida. Acessíveis e interessantes para músicos, ou somente interessados em saber mais sobre essa produção musical, os artigos foram escritos por alguns dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas. A presença do CD anexo, assim como as bibliografias e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada assunto abordado nos artigos. Desse modo, pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica, possibilitando que a mesma possa ser utilizada como um guia referencial para aqueles que pretendem começar a se enveredar pelo tema, e até servir como base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas. Dentre as publicações mais importantes de História
da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por somente um autor, podemos citar as de Vicente Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade, ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais. Nesta Textos do Brasil, por sua característica multidisciplinar unindo conhecimentos específicos para cada assunto abordado, pretendemos contribuir para incrementar e dar nova visão sobre essa não vasta, porém importante, bibliografia existente a respeito do tema. O primeiro texto da revista, “Música e sociedade no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata inicialmente da música composta e utilizada pelos jesuítas com o objetivo de catequizar os povos indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos da colonização. Apesar de não existir documentação musical remanescente do período, o pesquisador faz uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse processo, tendo como fonte o trabalho realizado pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando em suas notas as informações necessárias para a reconstituição provável desse material. No mesmo artigo, Budasz trata da produção musical para os versos do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das primeiras informações a respeito de uma prática de música não-litúrgica ou profana em nosso território. Desta também não restou documentação musical específica, porém é também possível realizar um processo comparativo e de reconstituição baseado em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que são feitas referências em documentos da época. Ainda no século XVII e início do XVIII temos, para não deixar de citar, o caso da música composta na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis − hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul do país, mas que no período pertenciam à Coroa espanhola −, sendo sua produção artística e musical mais diretamente ligada à arte barroca praticada em países como Argentina, Paraguai e Bolívia. Para conhecermos mais a respeito desta produção, basta que conheçamos os trabalhos editoriais
A música “clássica” no Brasil está ligada diretamente ao início da colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco séculos de transformações e adaptações culturais ocorridos no país e de partituras, assim como os registros musicais em discos e sobre música barroca hispano-americana. Tratando a pauta com respeito a uma ordem cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX. Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais difundido, porém também pouco conhecido da produção musical do Brasil colônia, que é a música sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Esse artigo trata justamente da música a partir do primeiro documento musical encontrado, que é um recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza as produções nordestinas do mesmo período para, aí sim, dar total ênfase à mais importante escola de compositores do período colonial, que é a das Minas Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto bastante completo, que contempla a produção de vários nomes importantes do período, como Emerico Lobo de Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros. Nesta nossa introdução não podemos deixar de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo musical se estabeleceu no Brasil colonial, principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa 7
linguagem musical eminentemente italiana tem uma trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir da década de 1710, manda jovens compositores portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como a mais importante colônia do império português do período, o Brasil tem uma grande atividade musical e está em estreito contato com as novidades vindas da metrópole, passando também a ter sua produção musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila Rica surgem para, além das tradicionais grandes cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem intensa atividade musical, que caracterizará um dos mais profícuos momentos da história musical brasileira. No entanto, não há parâmetro para as transformações nas atividades culturais e mesmo sociais do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de salvaguardar a alta administração portuguesa da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808. O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil: Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa justamente a falar das grandes mudanças sociológicas e estilístico-musicais que se seguem após este importante momento da História do Brasil. Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão, segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais representativo compositor desse período colonial brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia (1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio de Janeiro”, trata de sua interessante biografia e de como suas obras sobreviveram através do tempo. Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783 e a última de 1826, sua música também reflete as transformações que essa cidade, como capital
8
da colônia, sofreu em sua música e relações sociais. Esses anos foram intensos também para as artes plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística Francesa de 1817 e de músicos como o compositor austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço de Luís XVIII de França – e que permaneceu no Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção de música instrumental na corte como música para piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças à presença desse compositor, os músicos atuantes na cidade puderam travar contato com o que havia de mais relevante da produção musical centro-européia, como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José Maurício em 1819, e os oratórios As Estações e A Criação de Joseph Haydn, este último também comprovadamente regido por José Maurício em 1821. Nos anos que seguiram ao processo de Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em 1822, as atividades culturais sofreram um grande declínio em comparação aos faustos anos da presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma longa reestruturação se inicia com a criação do Imperial Conservatório de Música, atual Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teve como seu primeiro diretor o autor do Hino Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva, que durante o tempo de José Maurício esteve entre seus alunos diletos. Esse período se caracterizou por uma certa desestruturação da Real Capela de Música, transformada em Imperial Capela, e seus músicos – entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades financeiras. Essa época coincidiu também com a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo, passando a ser um novo parâmetro para a produção operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de poucos meses em relação às estréias européias. Essa modificação no gosto serviu de modelo para a criação
e mesmo para a vida musical do Brasil independente. A música das óperas de Rossini foi muitas vezes adaptada para a realidade da música sacra, criando curiosidades como a Missa da Gazza Ladra, de Pedro Teixeira de Seixas, em que a música da ópera foi transcrita quase literalmente para o texto litúrgico. Ainda nesse período inicia-se o interesse pela música instrumental. O início de um período romântico brasileiro pode ser caracterizado sobretudo pela figura de Antonio Carlos Gomes (1836 – 1896), que se tornou símbolo da vida musical do Segundo Império compondo óperas em língua portuguesa, como A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres (1863), e tendo conquistado êxitos relevantes na Europa com suas óperas, como Il Guarany (1870) e Salvator Rosa (1874). Contudo, outros compositores, como Elias Álvares Lobo, autor da ópera A Louca, também foram importantes para a criação, mesmo que temporária, de uma produção de óperas em língua portuguesa. Essas obras em língua nacional eram em estética musical italiana, profundamente baseada no “bel canto” de Bellini e posteriormente Verdi. Artigo a respeito de Carlos Gomes, “Considerações sobre Carlos Gomes”, é escrito pelo Maestro Luiz Aguiar, profundo conhecedor do assunto, responsável por vários trabalhos de resgate e edições desse importante compositor. No último quartel do século XIX, vários compositores brasileiros começam a se destacar na produção de música instrumental de forte influência alemã, como Alberto Nepomuceno (que foi aluno de Grieg na Noruega), Leopoldo Miguez e Alexandre Levy, e de linguagem francesa, como Henrique Oswald. Essa é uma importante geração de compositores que atuam num conturbado período de fins do Império e do início do período republicano brasileiro, quando começam a ser esboçados importantes conceitos nacionalistas em música. Nessa mesma época, o antigo Conservatório Imperial de Música passa a ser o Instituto Nacional de Música, tendo Alberto Nepomuceno como seu diretor. A música instrumental de câmara e sinfônica passa a ter papel predominante na vida musical brasileira. A respeito desse período e de seus principais
No entanto, não há parâmetro para as transformações nas atividades culturais e mesmo sociais do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI de Portugal para o Rio de Janeiro compositores foram escritos os artigos intitulados “O Modernismo Musical Brasileiro”, por Guilherme Goldberg, e “Henrique Oswald e os Românticos Brasileiros: em busca do tempo perdido”, por Eduardo Monteiro. Esses artigos contextualizam os compositores e suas obras em relação à produção européia e sua importância para a formação de uma nova e sólida linguagem na música brasileira. Nesse mesmo contexto, temos a figura fascinante e ambígua de Ernesto Nazareth, que circulou entre o meio da música de concerto, sendo ardoroso seguidor de Chopin, e a nascente música popular, por ter se tornado grande compositor de música de salão no Rio de Janeiro de fins do século XIX. O jornalista Alexandre Pavan, em seu artigo “Chopin Carioca”, aborda dados pitorescos da vida e obra desse compositor. Durante as primeiras décadas do século XX, questionou-se arduamente o que seriam características verdadeiras ou tipicamente brasileiras em nossa produção cultural e musical. Isso é completamente justificável dentro do pensamento de afirmação nacionalista de uma jovem nação que se consolidava como uma república e que, definitivamente, rompia seus laços com a antiga metrópole. Vale lembrar o dado histórico de que, mesmo após a independência do Brasil como nação em 1822, tivemos dois imperadores que pertenciam à linhagem portuguesa dos Bragança, respectivos filho e neto do último rei português a governar o Brasil enquanto colônia, D. João VI. 9
Com a proclamação da República em 1889, um novo país surge querendo romper com toda e qualquer influência do antigo regime. Principia o pensamento de afirmação nacional que perdura até meados do século XX, acalentado principalmente na Semana de Arte Moderna de 1922 e no surgimento do pensamento chamado Ricardo Bernardes. FOTO: AUGUSTO VIX de Antropofagismo, quando ainda se discutia e mesmo impunha-se uma série de normas e conceitos do que seria genuinamente brasileiro. Nesse ínterim muitos intelectuais do período passaram a valorizar a influência dos povos africanos e seus descendentes, assim como a das nações indígenas pré-existentes à chegada do europeu nestas terras, na formação da cultura nacional. Apesar de justificado, esse pensamento deu margem a muitas injustiças e falhas nos critérios de avaliação do que conteria ou não tais características. A produção musical anterior a esse pensamento nacional, como as óperas de Carlos Gomes e a já citada música sacra colonial, foi posta de lado, visto como uma arte decadente que desprezava os batuques africanos e a influência indígena e que, portanto, estava fadada a ser avaliada como arte submissa aos valores do colonizador2 . Mesmo depois do arrefecimento desse ideário, ainda hoje perdura o conceito ou o questionamento do que seja música tipicamente brasileira. Compositores como Villa-Lobos tiveram que se afirmar duplamente como brasileiros e universais, com obras que ainda são assim divididas por muitos músicos e estudiosos do assunto. Há o Villa-Lobos ombreado a Stravisnky, de música afrancesada e de instrumentação sofisticada e ousada, e há aquele que utilizou pretensos cantos indígenas e de negros, dando sabor nacional a sua música, abusando de recursos rítmicos e conclamando a pátria ao reconhecimento de seus valores. Como outros nomes importantíssimos que escreveram na recém-estruturada linguagem
10
nacionalista, citamos o ítalo-paulistano Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Guerra-Peixe e até mesmo, em uma fase, Cláudio Santoro. A idéia aqui não é criticar ou desconstruir o pensamento nacionalista, mas sim contextualizá-lo como um importante conjunto de idéias que se justificaram no período em que foram criadas e usadas como padrão, mas que já se tornam ultrapassadas e restritivas de uma avaliação mais ampla do que seria o universo musical no Brasil ao longo de praticamente cinco séculos. A respeito desse longo período, que vai das primeiras décadas do século XX até tardiamente, em alguns compositores ainda atuantes na década de 60, foram escritos os seguintes artigos: “Villa-Lobos Moderno e Nacional”, de Jorge Coli; “Francisco Mignone e Lorenzo Fernandez”, pelo Maestro Lutero Rodrigues; e “Guerra-Peixe, compositor multifário”, pelo compositor e regente Ernani Aguiar. Um dos principais instrumentos a entrar em ascensão no século XX, tanto na música de concerto quanto na popular, foi o violão. Emblemático da cultura vista como genuinamente brasileira, esse instrumento teve em Villa-Lobos um dos principais compositores e entusiastas. Especificamente sobre esse aspecto da obra de Villa-Lobos, e de sua atuação para enriquecer o repertório do violão e a posterior trajetória desse instrumento na criação brasileira, é que temos o artigo “A Música Brasileira para Violão depois de VillaLobos”, escrito pelo consagrado violonista Fábio Zanon. Ainda na década de 30, paralelamente ao ideário nacionalista, outro movimento se configura quase numa antítese a esse pensamento. O Movimento Música Viva, liderado por Koellreutter – falecido em 2005 –, teve entre seus seguidores vários compositores que transitaram entre essas duas linguagens, como os jovens compositores Cláudio Santoro e César GuerraPeixe. Tal movimento, como diz o autor do artigo “Música Viva”, Carlos Kater, não foi apenas responsável pela primeira fase da composição atonal e dodecafônica da música brasileira. Coube a esse movimento, mais precisamente, a criação de uma nova perspectiva da produção musical, imbricada numa concepção contemporânea da função social do artista.
Para tratar especificamente de Camargo Guarnieri, compositor de carreira brilhante e formador de muitos discípulos, temos o artigo da Prof a. Flávia Toni, uma das principais especialistas no assunto, “Camargo Guarnieri”. Para tratar da produção de Claúdio Santoro, compositor profícuo e de múltiplas linguagens – com importante carreira internacional também como professor – temos o artigo “Cláudio Santoro – uma trajetória”, pelo jornalista Irineu Franco Perpétuo. Mais recentemente, nas últimas décadas do século XX, grandes movimentos de música de vanguarda surgiram de forma organizada, criando festivais de música contemporânea, como bem atesta o artigo “Os Eventos para Divulgação da Música Contemporânea no Brasil”, do compositor Eduardo Guimarães Álvares. Finalmente, chegamos ao século XXI, aos compositores hoje atuantes e suas diretrizes para a fixação de suas linguagens e participações no mundo musical brasileiro bem como as relações com as demais produções ao redor do planeta. Para abordar esse tema
1. PERPÉTUO, Irineu. Revista eletrônica. São Paulo: Imagem, 2000. 2. Se num momento fomos colônia portuguesa, não havendo ainda, como em qualquer outra parte no mundo, um questionamento e definições de cultura nacional, hoje vemos que aquele momento pertenceu a um universo cultural luso que aos poucos foi adquirindo características singulares que poderiam diferenciar-nos em alguns aspectos da metrópole, mesmo que essa intenção não fosse proposital. É lícito dizer que a produção de música sacra no Brasil do período colonial, sobretudo no século XVIII, tem características que a diferenciam da praticada em Portugal, mesmo que sutis. Isso se dá da mesma forma como ao dizer que a produção de ópera italiana nos países germânicos por compositores também germânicos possam ter singularidades em relação à dos italianos natos, sem deixar de ser ópera italiana e ao mesmo tempo germânica. Essa ainda é uma discussão polêmica, mas que abre caminho para vários questionamentos sobre os conceitos de estilos nacionais. Baseado nesse mesmo princípio, ainda que bastante criticado pelo pensamento nacionalista, a música de características estritamente européias escrita por brasileiros – principalmente se escrita antes do surgimento dessa noção de nacionalismo cultural – pode conter elementos provindos da adaptação dessa linguagem musical
Mais recentemente, nas últimas décadas do século XX, grandes movimentos de música de vanguarda surgiram de forma organizada, criando festivais de música contemporânea contamos com artigo “Produção Musical Erudita no Brasil a partir de 1980 – Pluralidade Estética”, do atual presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, Harry Crowl, que discorre sobre as principais tendências atuais e os nomes mais representativos e atuantes desde a década de 1980 até os dias de hoje.
à realidade local, tornando-se também brasileira. Com esse princípio, tais adaptação e transformação são de grande valia para a compreensão da formação de uma cultura e produção musicais brasileiras, sem que necessariamente se procure encontrar características “brasileiras” tais como muitas vezes forjadas durante o auge do pensamento nacionalista. Do mesmo modo, em relação àquela que faz a quase totalidade da produção musical do Brasil colônia, a música sacra do rito católico é uma música de linguagem efetivamente européia, tipicamente italiana como praticamente em todo o Ocidente, mas que contém sua importância e singularidades em como essa linguagem foi aqui absorvida e sutilmente transformada. Para não alongar essa discussão, citamos ainda um interessante exemplo de como a circulação da produção musical vinda da metrópole se adaptou ao gosto e possibilidades locais. Chamamos a atenção para a tradição de representações de óperas barrocas portuguesas – de linguagem musical italiana – na então longínqua Pirenópolis, no sertão da província de Goiás, situada no coração do continente sul-americano. Essas óperas foram constantemente representadas e até adaptadas por várias gerações, assim como várias óperas de autores italianos que foram adaptadas para a língua portuguesa para serem compreendidas pela população local.
RICARDO BERNARDES Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001. Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.
11
Música e sociedade no Brasil colonial ROGÉRIO BUDASZ
Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra na Festa de Reis. Aquarela colorida do livro “Riscos illuminados de figurinos de brancos e negros dos uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio”. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
14
S
em levar em conta alguns casos isolados de portugueses e franceses fixando-se na costa brasileira, por livre vontade ou não, durante as primeiras décadas do século XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa região por europeus e seus descendentes tiveram início apenas na década de 1530. Missionários religiosos também começaram a se estabelecer nessa época, sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus, que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo da costa brasileira. O povoamento da costa brasileira nos dois primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil e da cana-de-açúcar, esse último marcando também o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram invariavelmente homens que estabeleciam propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se com as nativas, originando um novo tipo étnico, o mameluco, que se tornaria o principal responsável
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi marcada por iniciativas e regulamentações contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma identidade brasileira por proibir o surgimento de casas impressoras, periódicos e universidades. Para o colono, a única forma de literatura era muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos romances populares ibéricos de teor histórico ou moral. Muitos desses romances, geralmente cantados sobre melodias simples para não dificultar a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até hoje na tradição popular tanto em Portugal como no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros, A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros. Além desses, o repertório musical dos primeiros colonos e seus descendentes incluiria também cantos de trabalho para acompanhar ações rotineiras,
15
acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi. A primeira geração de brasileiros crescia, assim, ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua associação com os cultos nativos, algumas daquelas cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram os missionários, induzindo-os a comporem versões pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre nessa transmutação e ensinava também as doutrinas, orações e hinos católicos no idioma tupi.
Fora do contexto missionário, também eram comuns as bandas de corporações militares ou de escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados como aparato de ostentação e demonstração de poder, ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas, como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros. Para o acompanhamento costumavam ser usados tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica, quanto instrumentos de bocal, como as cornetas, sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos, tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas, numa tradição que remonta aos segréis da Idade Média. Tais festas e procissões, tal qual em Portugal, muitas vezes funcionavam como pretexto para
16
a socialização e diversão, como satirizaria o poeta Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo, a despeito de várias regulamentações repressoras e das opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre escravos era geralmente tolerado “para evitar males maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças também dificultava a identificação étnica de escravos de várias nações e crenças, diminuindo o perigo de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso até o início do século XX —, o que não parece jamais ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não só as descrições de viajantes como também o fato de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos e escravos nas festas. Quanto à música oficial do Estado e da Igreja, nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir em miniatura o estabelecimento musical português. Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo em que moldavam novas maneiras de fazer e usar a música: se Portugal era pequeno e densamente povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis certas práticas musicais e inúteis outras. MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO
A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro século da colonização formava-se ao redor de alguns fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso, o grosso da população habitava as propriedades rurais, que cresceram muito — em número e tamanho — nas últimas décadas do século XVI, passando a especializar-se no cultivo da cana de açúcar e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente, assim como no cultivo da mandioca e na produção da farinha. Distante dos centros urbanos — numa época em que eram poucos os que se destacavam —, o engenho ficava assim definido como a principal unidade de produção e povoamento, enquanto a Casa Grande era o seu centro administrativo e religioso, na verdade o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida
a educação civil e religiosa, bem como os encontros sociais, por ocasião de batizados, de casamentos, e da hospedagem de visitantes. Nesse contexto, a música era cultivada como auxiliar no fluir das atividades sociais, como passatempo na intimidade do lar, acompanhando momentos de devoção religiosa ou como demonstração de civilidade e poder para os olhos e ouvidos externos. E era por isso que a prática musical também fazia parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas diferentes, teriam os músicos escravos — cantores e charameleiros — que participariam do aparato de propaganda e demonstração de poder do senhor de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas.
Os primeiros que se dedicaram ao ensino da música foram os missionários, que, a princípio, concentravam-se nos nativos e usavam a música como instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois deles, representando oficialmente o estabelecimento musical da Igreja, aparecem os mestres de capela, enviados de Portugal para organizar a atividade musical de determinada região mas que também exerciam a função de instrutores da arte da música para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam a exercer essa função, embora de forma limitada, os cantores e instrumentistas mais destacados dentre os índios, negros e mulatos instruídos na música européia pelos missionários e mestres de capela, com o objetivo principal de interpretarem
Alexadre Rodrigues Ferreira. Desenho aquarelado. Viola que tocam os pretos. Desenho aquarelado do livro Viagem filosófica às Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
as composições por eles preparadas. Evidentemente, o filho de um senhor de engenho não entraria numa relação mestre-aprendiz com o mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não profissional era bastante comum entre a aristocracia e burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se compositores competentes. Sendo o profissionalismo musical indicativo de baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da quase inexistência de compositores brancos nas Minas Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses enviados com a expressa finalidade de servirem como mestres-de-capela), numa época em que, após a descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros urbanos no interior da colônia, multiplicando-se também as oportunidades de trabalho de cantores, instrumentistas e compositores. Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo musical, o diletantismo na música era qualidade apreciável. A habilidade como compositor é colocada por historiógrafos e bibliógrafos portugueses e brasileiros em pé de igualdade com a produção literária, e a proficiência na execução à viola ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários
17
da época comprovam que o mobiliário das casas grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além de dispor de aposentos usados como escolas, onde os filhos eram instruídos em aritmética, gramática, retórica, religião e música. Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de Almeida Prado menciona, entre a aristocracia paulistana de séculos passados, além de harpistas e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo” na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais não poderiam ser utilizados como forma permanente de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo da música como profissão ou como “elemento de civilidade”, usando a expressão da época. À época do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto buscava formas mais nobres de aquisição de capital, seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois, Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se com a filha de um latifundiário.
Fora do contexto religioso, além da citação de Almeida Prado, a harpa aparece também em um poema de Gregório de Mattos, animando uma festa. Mesmo utilizada como principal acompanhante das
18
funções religiosas pelo interior do Brasil até as primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece ter-se difundido muito como instrumento doméstico. Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função em larga escala, permanecendo neste papel a viola até ser sobrepujada pelo piano no século XIX. Principal acompanhador dos romances, cantigas, tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens (muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último instrumento originaria mais tarde a viola caipira brasileira, as diversas violas regionais portuguesas, e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores que se especializaram na viola de cinco ordens, como Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho e João de Lima aparecem com destaque na obra de Domingos do Loreto Couto, historiógrafo pernambucano do século XVIII. Além de chantre da catedral de Salvador por vários anos, João de Lima — conhecido do poeta Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor, deixando obras de música sacra e profana e dominando a execução musical em vários instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou vários anos em Portugal, protegido do patriarca de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria composto “sonatas e tocatas tanto para viola como para cravo”, além de música de salão, como minuetes e tonos. Forma de canção erudita bastante difundida na Península Ibérica e América Latina, o tono humano geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho, talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo português Antônio Marques Lésbio, com acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos
de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto a se esta peça é um tono humano, como sugerido por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme estudo de Paulo Castagna.
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência de peças compostas por aqueles violistas pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia bastante aproximada do que tocavam, através das fontes portuguesas do início do século XVIII, para a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão para a formação do instrumentista luso-brasileiro daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão, o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas fantasias e rojões. É importante lembrar que o repertório popular ibérico e latino-americano era muito menos heterogêneo no século XVII do que em nossos dias. Portugal havia reconquistado sua independência da Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante a infância e juventude de Gregório de Mattos, os elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol, e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram representadas em Salvador, autores brasileiros também escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente, a música desse período também pareceria a nossos ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma influência nacional específica do que da evidência de um estilo compartilhado e generalizado por toda a Península Ibérica e América Latina, como o atestam, por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar
Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como o repertório português para viola e teclado. Na ausência de documentos musicais, uma ótima fonte de informações sobre a música não-religiosa tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever funções musicais e teatrais, de mencionar instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais comuns tanto em Portugal como na Espanha e América Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em outros casos, Mattos usa modas profanas em português, ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos” cantavam. Religiosos e moralistas continuavam encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta Pereira, era exímio tocador de viola. Na segunda metade do século XVIII, o repertório musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um lado, o de danças afrancesadas como o minuete e a contradança — as principais coreografias de salão no Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as canções simples — as modas — agora influenciadas pelo estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas, despretensiosamente denominadas “modinhas”. Se a princípio estas apresentavam uma temática pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época, o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto escandalizou viajantes do norte da Europa — originando assim a modinha brasileira, que acabaria voltando para Portugal nas obras de poetas e compositores como Domingos Caldas Barbosa e Joaquim Manuel da Câmara. Felizmente, foi preservada muita música desse período, sendo notáveis as peças coletadas pelos viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças instrumentais contidas no livro de saltério de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início 19
do século XIX. Há ainda uma única peça para teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará, cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas. Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda década do século XIX, nos dão uma idéia do estiloda música de câmara para cordas composta nos últimos tempos do Brasil-colônia. DISCOGRAFIA
Romances Populares: TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial. Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta José de Anchieta: TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6:Venid a sospirar con Jesu amado (Companhia Papagalia) Marinícolas: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixa 2 TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Discos; faixa 12 Matais de Incêndios: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixa 36 A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra) Sonata ‘Sabará’: NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod. independente, faixa 5 Modinhas: MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela Nogueira. Estúdio Eldorado. MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração; faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que tem? Coleção de Spix e Martius: VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela Nogueira. Estúdio Eldorado Recitativo e Ária: HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji. Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12 Duetos concertantes: GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester Brandão, Koiti Watanabe. Paulus
20
CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS
Uma espécie de teatro moral com intervenções musicais já se encontra presente no primeiro século da colonização, nos autos preparados por José de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico era óbvia, e os números musicais cumpriam a função de tornar mais atraente a mensagem de submissão à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves e cômicos com danças, canções e romances populares. Nos séculos seguintes, os modelos passariam a ser Lope de Vega e Calderón. São bastante numerosos os relatos sobre a representação de comédias musicadas nas casas abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como aquelas para as quais o pernambucano Antônio da Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase certo que tais comédias — a grande maioria escrita em idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros e alguns recitados alternando com diálogos falados. Durante o século XVII, não se tem notícia na colônia da apresentação de óperas no sentido moderno do termo, ou seja, a encenação de um enredo integralmente posto em música. Mesmo no século XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da Silva, com diálogos falados e poucos números musicais, não era incomum encenarem-se libretos operísticos sem qualquer emprego da música, funções que eram mesmo assim denominadas “óperas”. Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas acepções — desde cedo explorados no Brasil como instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas especificamente destinadas à representação de dramas, comédias e entremezes em música — as casas de ópera — que visavam promover uma educação cívica paralela à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir, além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha de povoamento do interior que se sucede à descoberta
do ouro, encontramos casas de ópera em várias localidades das Minas Gerais, de Goiás e tão longe quanto em Cuiabá, no centro geográfico da América do Sul.
O repertório das casas de ópera no século XVIII e boa parte do XIX incluía principalmente dramas de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata, que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas usando de disciplina quando necessário. Os libretos escolhidos eram bastante convenientes para a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente identificaria o herói com o soberano português. Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha compilado uma lista impressionante de óperas representadas no Brasil durante o século XVIII, apenas algumas páginas de partituras sobreviveram, impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição. Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza Queiroz a música de cena para uma peça teatral de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser realizada sobre as óperas de autores europeus — Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para citar os mais importantes — representadas em casas de ópera brasileiras. Por volta do final do século XVIII, devido à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas
mais e mais como espaços daqueles que podem pagar e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores e instrumentistas sempre foram na sua maior parte mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais informal, pelos diretores musicais dos regimentos militares ou das bandas de músicos dos engenhos e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem além da casa de ópera local, como foi o caso da cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha, que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses. Não se colocando na posição subserviente de músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam restritas possibilidades de demonstração de suas habilidades performáticas, fossem elas de poeta, intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço doméstico, havia a academia, um misto de clube literário e sociedade secreta que se difundiria pelos principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda metade do século XVIII. É no contexto das academias, ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador da modinha brasileira), e de obras como a cantata Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta em Salvador em 1759. Não sobreviveu até nossos dias o repertório de música de câmara que talvez fizesse parte das reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso, comprovando a prática da música de câmara européia no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius, sobre um mineiro que intercepta os viajantes no interior da mata e os convida a irem à sua casa, onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.
ROGÉRIO BUDASZ Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Federal do Paraná.
21
A música no Brasil Colonial anterior à chegada da Corte de D. João VI HARRY CROWL
22
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA,TÊM APONTADO SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII. ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL. 23
O
conjunto da produção musical encontrado na capitaniageral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro, tornou-se a referência mais antiga da produção musical artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos isolados de manuscritos encontrados em outras regiões do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro grande conjunto de obras musicais disponíveis para o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado sobre a expressão musical no país. Apesar do deslocamento do eixo econômico para a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências musicais comprovadamente mais antigas do Brasil. Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes na década de 1980 apontam para as práticas polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII, somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia, Salvador, como ponto de partida para qualquer consideração que queiramos fazer sobre a música exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior à independência política. Sendo a região por onde iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa época uma sociedade já relativamente sedimentada, se comparada com as demais regiões da Colônia. Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco como a segunda região mais importante do ponto de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido, o achado mais importante até agora é uma obra de caráter profano, anônima, composta em 1759, denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de 2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco Pereira de Mello, um importante magistrado da “Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça de Portugal, na época. Essa composição, que está baseada num texto vernáculo, também de autoria desconhecida, é uma laudatória em homenagem ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual semelhante à “Arcádia Romana”. O referido magistrado estava recém-restabelecido de uma longa enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária foi composto especialmente para recebê-lo numa das reuniões da “Academia”.
24
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo. Na época em que viveu na capital portuguesa, ele compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia cópias de música e dava aulas em casas de nobres. Na relação de músicos portugueses publicada por José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino, muito inteligente na língua Francesa, e Italiana; acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com muito aserto” (sic). Em 1761 já estava de volta a Pernambuco, profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável pela formação de vários músicos e mestres-de-capela. L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente de capitão do regimento de milícia confirmada também em 1766. Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780. Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde 1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento. De suas poucas composições que alcançaram os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado, cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão, matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio, novenas, ladainhas e sonatas.
Apesar do deslocamento do eixo econômico para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências musicais comprovadamente mais antigas do Brasil. Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar em Lisboa — de acordo com a documentação conhecida até o momento —, por outro lado, o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 — São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela metrópole, no século XVIII, para ocupar a função de mestre-de-capela numa vila importante da colônia. Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 — 1801?), compositor português aluno do napolitano David Perez (1711 — 1778), importante músico que sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras foram amplamente difundidas inclusive no Brasil. André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e veio para o Brasil em março de 1774. Assim que chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestrede-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto ocupante da função. Suas atividades foram intensas,
pois, ao que parece, havia uma necessidade de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde sua chegada até 1801, foi também o responsável pela música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo. Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário de Pernaguá, atual Paranaguá, PR. Como já acontecia nas demais partes da colônia, o compositor precisou atuar em outras profissões para poder sobreviver. Após requerer algumas funções que lhe permitiriam independência econômica em relação à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente, em 1797, para o cargo de professor régio de gramática latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801. André da Silva Gomes abandonou todos os serviços
J. J. Emerico Lobo de Mesquita. Tércio (1783). Fotografia do original autógrafo. FUNARTE
25
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão em benefício da capela de música da catedral, que não deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras composições de A. da Silva Gomes, datadas e assinadas, remontam ao ano de sua chegada a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas aqui por ele, existem diversas obras de compositores portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs mais de uma centena de obras. Muitas delas foram recopiadas posteriormente por outros, sem que se transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que parece, uma adaptação de outra obra bem anterior. No último quartel do século XVIII aparece ainda o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-decapela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador, e é também o primeiro compositor a atuar na região do qual encontramos exemplos musicais concretos. Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766, Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação musical no Seminário Patriarcal em Lisboa, provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde assumiria a função de mestre-de-capela, com o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo. A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter gozado de considerável reputação em toda a região, pois sua única composição encontrada no Brasil até o momento, os Motetos para os passos da Procissão do Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada
em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção de música para a Semana Santa, anônima, proveniente de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição por Alexandre Bispo. MÚSICA NAS MINAS GERAIS
O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim como o próprio afastamento geográfico da região da Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando, assim, de critérios específicos para sua avaliação. A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir de 1696, a grande movimentação humana em direção ao interior do continente fez com que as autoridades portuguesas regulamentassem a ocupação dessas regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas, a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica formavam uma espécie de unidade corporativa desde o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros e conventos era uma realidade aparentemente irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela também possibilitava o contrabando de ouro e pedras preciosas diante das autoridades civis, sem que essas pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação, muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro, determinou-se que toda a vida religiosa na região das minas fosse organizada por ordens leigas, ou irmandades formadas por homens comuns, que deveriam contratar todos os serviços relativos ao “bom desempenho das funções religiosas”.
Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para não haver distinção entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses ou posição social. 26
Essas irmandades eram denominadas também como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias, de acordo com sua importância na comunidade. Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos, pardos ou negros. O Estado colonial incentivava a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam de desde a construção da igreja até a contratação de artistas para a realização da decoração interna, talha, escultura e pintura, assim como a contratação de músicos para a criação e interpretação da música que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”, ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros. Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para não haver distinção entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses ou posição social. A informação mais antiga que temos a respeito de um compositor ou regente ou organista, na antiga Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na primeira metade do século XVIII, encontramos os nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias relativas à música em Minas no século XVIII estão restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas das irmandades. Não há registros de nomeações ou informações impressas sobre os compositores, pois a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-decapela era um privilégio das sedes de bispado, portanto somente a vila de Mariana contava com nomeações para essa função. Nas demais vilas encontramos a denominação de “responsável pela música”, o que não implicava um cargo permanente, pois um músico responsável pelo serviço em um ano determinado poderia ser substituído no ano seguinte. A documentação musical propriamente dita encontrada até o momento concentra-se numa produção posterior a 1770. Na condição de capital da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local de atividade mais intensa durante o período de final
Luís Álvares de Azevedo Pinto. Te Deum Laudamus. Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1968. Restauração do Padre Jaime Diniz. FUNARTE
do século XVIII até por volta de 1850. O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?). A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso na Irmandade de São José dos Homens Pardos, em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões até 1793, atuante em quase todas as Irmandades e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles: o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal. Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição sobre texto vernáculo em português. É a única do gênero encontrada até agora no Brasil. No período em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros músicos importantes foram seus colegas no conjunto vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer indicação de como esses músicos que viveram na região das minas aprenderam a arte da solfa. Não há menção em qualquer documento da existência de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais razoável seria a de que eles se desenvolveram num processo de iniciação que seguia o modelo de relação mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos, 27
DISCOGRAFIA
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA Negro Spirituals au Brésil Baroque Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM Camerata Antiqua de Curitiba Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil ANDRÉ DA SILVA GOMES: MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil VENI SANCTE SPIRITU Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes AMERICANTIGA,Vol. I PLCD51837 - Brasil JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA: MISSA EM MI BEMOL MAIOR Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora Direção: Luís Otávio Santos CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil MATINAS DE SÁBADO SANTO Calíope Direção: Júlio Moretzsohn Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG Brasil MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS Calíope Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO: MATINAS DE NATAL Coral Porto Alegre e Orquestra Regência: Ernani Aguiar CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre, RS - Brasil
28
como já pode ser constatado. Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias, em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos homens Pardos, em junho de 1768. Em todas essas confrarias, ocupou cargos importantes, como o de escrivão e tesoureiro. Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras festividades, durante longo período da segunda metade do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo recenseamento consta que Gomes da Rocha contava com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto, nascido em 1754. De sua produção, conhecemos apenas uma parte mínima, que são as obras Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar, de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para 2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo contínuo. Há ainda uma obra incompleta, as Matinas do Espírito Santo, também de 1795. Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado com a contratação para a realização do serviço anual das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica. Em 1770, entrou para a Irmandade de São José dos Homens Pardos, que lhe registrou o falecimento em 10/06/1820. Outros três compositores de Vila Rica que mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?— 1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?) e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica, 1794 — Mariana, 1832). Coelho Neto, que era trompista, clarinista (trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além de compositor e regente, exerceu ainda, segundo documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral Luís da Cunha Menezes para reger a música de três óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão Arp Schnitger mais importante fora da Europa. do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória. Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica, o compositor declara contar com 58 anos, tendo nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas. Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto, foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento. Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823. Acreditamos que as obras que levam o nome de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois apresentam características formais muito semelhantes entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando o hino Maria Mater Gratiae foi composto. Jerônimo de Souza Queiroz foi organista e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra. Seu nome tem sido freqüentemente confundido com o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre 1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o seu nome aparecido em qualquer referência após 1826. De sua obra, dispomos hoje de uma coleção aproximada de 20 manuscritos. Suas composições mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae (Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa). O último grande compositor ativo em Vila Rica
foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo (1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome aparece como o responsável pela regência da temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823, atuou como organista da Ordem 3a do Carmo, alternadamente, a partir de 1819, com sua formação sacerdotal no Seminário de Mariana, que se completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior, que é o único exemplar de música puramente instrumental encontrado em Minas pelo autor do presente texto. Suas principais composições são: Missa e Credo a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum (1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832). O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos de idade, em 1832. Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como sede do bispado, foi um centro musical de grande importância, sendo que a função de mestre-de-capela foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz. Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte da Alemanha, originalmente para servir em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp Schnitger mais importante fora da Europa. 29
Outro compositor importante que provavelmente atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão, procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras encontram-se em manuscritos, no Museu da Música de Mariana. Da avaliação que se pode fazer até o momento da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará, percebemos que a produção musical de lá foi igualmente intensa, porém a perda da documentação musical foi ainda maior que em outros lugares. Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos (1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP, em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está bem próxima da dos demais compositores. As Vilas de São José e São João del-Rei desempenharam também um importante papel na produção musical do período. O compositor de maior destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse compositor jamais atuou fora de sua região, onde foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José del-Rei (atual Tiradentes). A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos. Em São João del-Rei, os compositores mais importantes são Antônio dos Santos Cunha, Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José Fernandes Braziel.
Santos Cunha representa, juntamente como Pe. João de Deus, o início das influências românticas na música produzida na região das minas. Esse compositor atuou em São João entre 1815 e 1825; ignoram-se as datas de seu nascimento e morte. A primeira notícia escrita de atividade musical em São João del-Rei data de 1717, quando o Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma visita à antiga vila. O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata minuciosamente a recepção, descrevendo desde a marcha de entrada da comitiva na vila até a solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo o clero e música”, o que provavelmente indica uma forma alternada de canto em polifonia com os padres cantando um verso gregoriano e o conjunto musical respondendo com um verso musical, tal como se faz, ainda hoje, na cidade. Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo responsabiliza-se pela parte musical de importantes festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos depois, organizou a música para a festa de São João Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em 1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser o compositor mais antigo do qual conhecemos algum exemplo musical. Trata-se de uma Antífona: Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos. 30
compositores mineiros da época. João José das Chagas e Francisco Martiniano de Paula Miranda são compositores também representativos da música do início do século XIX. Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles como músico. Em época ignorada, esse compositor transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade (atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga que temos é uma página de rosto existente no Museu da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida. Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira “Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas. Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange, em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte, a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815. Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto, uma Trezena de Santo Antônio e um Domine ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles. Outro importante compositor é Joaquim de Paula Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha (século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo (século XVIII/XIX). Lobo de Mesquita atuou como organista e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775, quando se transferiu por motivos desconhecidos para o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas, de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão
(baixo contínuo), o que mostra que o compositor, muito provavelmente, já atuava como organista nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido. Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha. A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor faleceu em 1805. Como todos os outros compositores de sua época, a maioria de sua obra se perdeu. Algo em torno de 60 manuscritos chegaram até os nossos dias. José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807 e 1808, e que seu nome figura numa relação de músicos da Irmandade de Santa Cecília no período de 1817 a 1838. O nome de Alberto Fernandes de Azevedo aparece no período de 1804−1805 na Capela das Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade, segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819 foi encarregado de compor a música para cravo para a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco. Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias: Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação para quatro vozes e baixo.
HARRY CROWL Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná. Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).
31
MÚSICA NA CORTE DO BRASIL
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821 PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO
O
s projetos de transferência da Corte somente se concretizaram no período em que as incursões napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios do século XIX, diante do medo e das ameaças que levariam à perda do poder e de partes do território
Na página ao lado: Henrique Bernardelli. José Maurício tocando para D. João VI. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes. Para alguns se tratava de uma traição; para outros, estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto o abandono do povo e do trono, como o único recurso capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para os perigos de permanência da Corte em Portugal, na iminência do ataque francês, e para os benefícios que
33
essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para o marquês de Alorna, foi estratégica e importante a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil, porque daqui, como um imperador em um vasto território, os domínios poderiam expandir-se e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as potências da Europa”1. As recomendações do marquês de Alorna não foram novidades nos inícios do século XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que os franceses incomodaram a monarquia portuguesa, e muito menos era nova a aliança com os ingleses. Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia já admitia um projeto de se instalar fora das mediações de Portugal e se estabelecer em algum lugar do ultramar. Ou porque temia as interferências dos estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira metade do século XVII e na derradeira expansão napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque realmente confiavam no potencial econômico do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha, a retirada da Família Real para o Brasil era necessária havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças de Junot. Não bastava somente uma retirada nem as lembranças de uma terra promissora, que por direito de conquista deveria acolher o príncipe e sua família. Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos. Como estratégia política ou como reação que previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por 13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira mudança foi acolher um número estimado de reinóis entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já no plano das perdas e da autoridade, começou nos despejos. Para toda população que tinha uma das residências “das mais excelentes”, ou pelo menos habitável, estaria sujeita, mais por obrigação
34
que por espontaneidade, a ceder sua residência aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”, para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as relações com os estrangeiros foram mais abrangentes. Spix e Martius mostram que vários países vendiam produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão, chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar, vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias, móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda, cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria, relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné, Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno, a manufatura e a indústria, que ainda começavam a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem em termos de gosto nem em termos de tecnologia da civilização, com os da Europa. Os hábitos estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos cariocas, seja pela observação do outro, seja pela imitação de seu comportamento. Durante todo o período joanino, houve no Rio de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída basicamente em dois setores, o da Corte, onde a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte, em que a funcionalidade era festiva e mítica. É importante pensar nisto, numa complexidade que surge no momento em que negros e mestiços são
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes com seus instrumentos típicos e com suas próprias interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros artífices para algum trabalho ou para abrilhantar alguma festa em caráter de urgência foi uma medida comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era necessário atender um desejo de manter a pompa, a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente. Muitas vezes não era possível. Em algumas situações, criava-se, literalmente, o artífice e artesão, normalmente uma maioria de negros, mestiços e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram formulados pela ordem e obediência. Em algumas circunstâncias, para atender à demanda musical, ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres, dos diletantes que estavam à mercê dessas relações de poder, não foi diferente. Robert Southey chega a falar de “devotos músicos” que eram chamados para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 . Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas
e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento. Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”. No Rio de Janeiro já existia uma vida musical significativa para aqueles tempos históricos, com compositores ativos e importantes, como Lobo de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-decapela, compositor e organista que se tornou uma das maiores expressões da História da Música no Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da Família Real para o Brasil, juntamente com alguns dos compositores e intérpretes portugueses que serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo e as práticas desses músicos coloniais, “construindo” uma nova percepção do gosto e uma nova maneira de observar o mundo das artes. O surgimento de instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais, favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais 35
oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele, contribuíram com seus comportamentos e hábitos de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção do Real Teatro de São João, palco ideal para as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm, com eles circulam também as idéias. A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento de uma prática de corte, para sustentar a demanda de música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos importantes que transformaram a idéia da criação e da recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo, mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma de audiência das obras no período joanino. Classicismo e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse período em que a Família Real esteve no Brasil foi exatamente uma articulação desses estilos. Se a música vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música instrumental se baseou nos modelos do classicismo vienense. As relações da Casa de Bragança com as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria, se reforçavam cada vez mais, através de questões políticas e conveniências matrimoniais. Acontecimentos como a vinda da Missão Artística em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos costumes e hábitos europeus. O que aqui denominamos por “classicismo” conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”. Um se refere à estilística tipicamente germânica e austríaca; outro, como diz o próprio termo que o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim, uma situação político-administrativa, o “colonialismo”
36
português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse último termo tem significado histórico e prático. Na verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou muito nas suas relações externas. Classicismo, com Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por José Maurício. Essas relações são importantes para a compreensão de uma estilística resultante de práticas coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera italiana do final do século XVIII e da primeira metade do século seguinte reservava o caráter virtuosístico predominantemente aos cantores castratti. Como uma extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda desses cantores para a colônia, transportando, da melhor maneira possível, o cenário da prática musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento de uma prática de corte, para sustentar a demanda de música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, baseado em práticas cortesãs.
Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja. A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
A imaginação individual era canalizada estritamente de acordo com o gosto dos patronos. No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades, e por vezes o poder político, através dos Senados e das Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres, ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida correspondência com os aspectos morais e espirituais permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação social do músico e a conseqüente estilística tomaram, a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho: o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética e o artista, agora com nome, endereço e personalidade. Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm desapontou a todos, aristocráticos e burgueses, e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade.
No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era uma situação favorável, por três motivos básicos: melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar contato com músicos estrangeiros e linguagens modernas e, por fim, de garantir um status social e financeiro em parte suficiente para viver em colônias. A música praticada fora do círculo cortesão foi tão multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição e novidade. Costumes e práticas de várias culturas conviveram no Brasil joanino. Negros e índios compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial, os europeus tiveram de articular seus costumes e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu 37
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso, mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos aqui de formas culturais, cada uma com sua força e tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes, entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno pensar em um mundo apolíneo nos domínios de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita, normatizada, programada e cheia de sanções morais em um ambiente onde ela era mais espontânea. As concepções de Nietzsche sobre os mitos de Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir temas de culturas variadas nesses espaços comuns6. Numa outra dimensão da idéia que caracteriza os personagens, a música de Apolo é européia, encontra-se cultivada fora das camadas populares, levada para o ultramar como pressuposto de modernidade e civilização, como um dispositivo importante de uma cultura que cristianizou e sustentou o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia; encontra-se nas manifestações das culturas de tradição oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio DISCOGRAFIA
O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano) MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone (fortepiano). Luiza Sawaya (canto) GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão e Koiti Watanabe (violinos) MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo) MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto Coral. Direção: Cleofe Person de Matos MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral Orquestra Sinfônica Brasileira Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v VENENO DE AGRADAR. MODINHAS Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto) Achille Picchi (piano) MUSICA BARROCA BRASILEIRA Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440 Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios
38
se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques, práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns. Entretanto, em alguns momentos da vida social da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma data ou reverenciar algum nobre ou príncipe e, de forma estratégica, esses encontros de todos serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte, que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade, que não seguia determinadas normas de tocar, cantar, compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito a ponderações muitas vezes preconceituosas. Ao contrário das práticas de corte, as manifestações de características populares ou étnicas, como aquelas encontradas entre os brancos pobres, africanos e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas, no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas a cultos de deidades negras e a rituais animistas. A dos brancos pobres, os excluídos do processo de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas absorveram elementos de todas as outras, em menor escala, dos indígenas. Os negros também absorveram, através do catolicismo, formas miscigenadas das práticas européias e deram uma outra roupagem às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que procurava se impor7. Tudo isso era um espetáculo, uma mistura de catolicismo com atividades autóctones, própria de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos, nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto de sincrético quanto de propriedade. A palavra sincretismo vem designar não a simples e inevitável mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como uma forma em que as culturas não européias deveriam aceitar a cultura do outro. Em propostas mais abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira de preservar a própria cultura em detrimento das
interferências e das imposições das culturas européias. Nessa forma de observar o sincretismo, os negros, sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas raízes e a absorção inevitável da cultura do branco se tornou um matiz para a preservação de sua própria cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa em tudo, esse sincretismo era a única forma possível de preservar o que é seu sem cair nas malhas da vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas tribos e nas regiões rurais que as manifestações se tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da cultura européia. Preservar a cultura afro-americana ou indígena, assim como impor por meios diversos a cultura européia, era uma articulação viável que, ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra. Surgem dois territórios onde as formas de cultura se contracenam: um público e outro privado. Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte vinha de uma observação que era inversa à de um mundo proposto em um mundo diferente. Em toda essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas onde as trocas com elementos externos aconteciam primeiro, era de se esperar que existissem formas de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que existiram momentos em que as diversas formas
1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro, Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatálas, mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que aconselha tudo isto a Vossa Alteza”. Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801. Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54. 2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439.
de culturas – as autóctones, as européias e africanas – manifestaram-se isoladamente, e em outras oportunidades fundiram-se numa só, permitindo a existência de vários elementos se entrecruzando. Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços originais, na sua própria origem, como no caso dos índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato dos rituais, do entretenimento ou da demonstração de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas, ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas, flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão, existiu a convivência com negros que andavam pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus. Os índios, talvez por estarem menos expostos à cultura urbana, participaram em menor escala desse processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível também imaginar os índios descritos pelo príncipe Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil, e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou uma sociedade que tinha pajés, reis do congo, D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações e um espaço de tolerâncias.
ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições Afrontamento, 1993, p. 837. 3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790. 4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67. 5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435. 6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958, p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio é africano e indígena, e em certa medida, colonial. 7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MAURÍCIO MONTEIRO Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.
39
José Maurício Nunes Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio de Janeiro RICARDO BERNARDES
J
osé Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais significativos compositores da América colonial no que diz respeito à quantidade de composições, à qualidade estética e à definição de uma linguagem própria, facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza e o destaca dos compositores mineiros ou hispanoamericanos do século XVIII, que podemos identificar, respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo comum de composição. É também o único compositor colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos defensores, desde seus contemporâneos Manuel de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que, em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse as principais obras de José Maurício, reunidas e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1, e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897, o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para canto e piano ou órgão2. Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay, reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes”3 , contribuindo assim para a imagem que o século XX tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante os primórdios da República, quando se buscava criar a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma identidade nacional. Ainda, durante o século XIX e o início do XX, outras iniciativas foram tomadas, por compositores como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno, visando recuperar a obra do padre mestre, através de sua restauração e execução, como no caso da reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900, ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol de 1801, com reorquestração de Nepomuceno. Louis Claude Desausles Freycinet. Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820. Paris, Pillet Ainé, 1824. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
41
Foi a partir da década de 1940, dedicados ao conjunto da Sé. porém, que a vida e a obra de José Em 1808, fugindo das tropas Maurício Nunes Garcia contaram napoleônicas sob o comando de com um estudo bastante sério Junot, D. Maria I, o príncipe regente e profundo, realizado pela regente D. João, a real família, parte da e musicóloga Cleofe Person de Corte e da alta administração do Mattos, que, além de transcrever reino português deslocam-se para e promover a execução de suas a capital da colônia com o objetivo, obras, editou o “Catálogo temático ímpar na história da colonização do Brasil e das Américas, de lá das obras do padre José Maurício se instalarem e fazerem da cidade Nunes Garcia”4 , obra fundamental Pe. José Maurício Nunes Garcia. para o conhecimento da produção a nova capital do reino, Litogravura. INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO mauriciana. Na década de 1980, aproximando-se da metrópole sob a pesquisadora editou ainda 10 todos os aspectos. 5 partituras, reunidas em 8 volumes ; Um choque de urbanidade em 1994, o Réquiem de 1816, na então se impõe sobre o Rio de versão completa de orquestra6 , e sua Janeiro, que – por esforços pessoais 7 biografia mauriciana . do ainda príncipe regente, a ser A 22 de setembro de 1767, nasce coroado D. João VI apenas em 1818 José Maurício Nunes Garcia, filho – vai gradualmente se tornando uma de Apolinário Nunes Garcia, capital nos moldes europeus, com (segundo registros) de raça branca, a vinda da imprensa, a abertura dos e de Victória Maria da Cruz, de portos ao livre comércio, a criação ascendentes imediatos “da Guiné”, da Biblioteca Real. A modernização também se reflete sobre a vida musical da cidade, o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia através da construção de um Teatro de Ópera Júnior, único filho legitimado de José Maurício, e, principalmente, da criação de uma Real Capela de descreve seus avós paternos como mulatos claros Música, nos moldes da Real Capela lisboeta.10 “de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto Quando do desembarque da Corte, a 8 de março Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras de 1808, todas as festividades de recepção estavam do Padre J. M. N. G.”8, indica a freguesia de Nossa preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador, Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade. Rio de Janeiro, como local de seu nascimento. Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum, José Maurício tem sua formação musical com em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé, Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício, da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde contava com um grupo vocal formado por cantores os doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16 meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos, anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria. como tenores e baixos. Contava ainda com um É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado 9 pequeno grupo de instrumentistas, que segundo para assumir a função de mestre-de-capela da Sé a prática de orquestração de suas obras até então, do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja provavelmente consistiam em: cordas, flautas, da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto, ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo, José Maurício já compunha para essa instituição realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este mesmo antes de sua nomeação, como comprovam é o primeiro contato que o príncipe regente trava com os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797,
O tempo de José Maurício à frente da Real Capela é claramente um período de transição estilística entre suas duas práticas
42
do “estilo da Capela Real”. a música do compositor carioca. O que justamente caracteriza No mesmo mês, D. João terá ainda esse período como de transição várias oportunidades de avaliar é a síntese através da qual José a qualificação musical do conjunto Maurício adapta sua música da Sé e, especificamente, e sua linguagem, obtendo um estilo a qualidade do nível de criação híbrido em sua criação, ainda com de seu mestre-de-capela, o padre resquícios fortes da primeira fase, José Maurício. mas já alçando vôos em direção O claro objetivo de D. João era ao estilo que iria caracterizar montar uma capela musical no Rio sua segunda fase: mais madura de Janeiro nos moldes daquela que Marcos Portugal. e moderna. havia em Lisboa, tanto no formato Litogravura assinada por Rodrigues. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E O período de 1808 a 1811 quanto na fixação de um estilo ARQUIVO SONORO é extremamente fecundo: José musical para as obras que para Maurício compõe cerca de setenta lá seriam compostas. Designa obras visando atender à extensa então José Maurício para dirigir série de solenidades. Entre as mais as atividades da recém-criada importantes, comprovadamente instituição, formada por músicos já do período e que sobreviveram até atuantes na cidade e alguns vindos nossos tempos, destacam-se: a Missa com D. João. Numa demonstração São Pedro de Alcântara de 1808, de apreço e admiração por seus e outra Missa São Pedro de Alcântara talentos musicais, D. João de 1809, um Te Deum para as Matinas concede-lhe o Hábito da Ordem de São Pedro, um Stabat Mater, de Cristo, em 1809. A partir desse ano começam a chegar arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809. de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas. Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes Os músicos são atraídos pelas possibilidades e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa de trabalho propiciadas pela instalação permanente Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para da Corte na cidade e pela construção, em andamento, coro e órgão e um Te Deum em dó maior. do Teatro de Ópera. No entanto, a grande obra do período de José Todos esses acontecimentos, que propiciam um Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810. obras que começam a circular na colônia, trazidas por É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente D. João11, serão os responsáveis pelas transformações das que havia composto até então e uma das mais na linguagem musical de José Maurício. sofisticadas de toda a sua carreira, composta num O tempo de José Maurício à frente da Real Capela momento de plena maturidade: José Maurício tinha, é claramente um período de transição estilística entre então, 43 anos. suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos Era um momento cheio de esperanças e alegrias pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada para o compositor – por passar a trabalhar à frente de um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado, potencialidades como músico e artista –, mas também a partir de então, a escrever uma música mais brilhante de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua e virtuosística, com o objetivo de se aproximar condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma
José Maurício tem a oportunidade de estrear obras como o Réquiem de Mozart, em dezembro de 1819, e o oratório A Criação de Haydn, em 1821.
43
formação musical, em muitos em 1816, no intuito de retomar aspectos, autodidata. relações diplomáticas com a Corte A composição da Missa portuguesa –, José Maurício tem da Conceição para 8 de dezembro a oportunidade de estrear obras daquele ano pode ter sido uma como o Réquiem de Mozart, em comprovação aos músicos e ao dezembro de 1819, e o oratório príncipe de que José Maurício podia A Criação de Haydn, em 1821. se adaptar ao novo gosto. Essa missa O padre mestre compõe, no mesmo figura entre suas obras mais ano, dois salmos, Laudate Dominum importantes, ao lado do Ofício e e Laudate Puerum, que, segundo o Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de punho do próprio compositor, foram Nossa Senhora do Carmo, de 1818, “arranjados sobre temas da Creação e da Missa de Santa Cecília, de 1826. do Mundo do immortal Haydn”14. Em 1811, a chegada de Marcos Podem ser observadas, ainda, Portugal, o mais afamado citações do oratório As estações, compositor português de sua época, do mesmo Haydn, em obras mais encerra o período de Nunes Garcia tardias, como no Qui Tollis da Missa como diretor e compositor da Real Abreviada, de 1823. Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro Capela. De renome internacional, Sua última obra e legado Voyage pitoresque et historique au Brésil. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – Portugal vem assumir na cidade é a Missa de Santa Cecília, DIVISÃO DE ICONOGRAFIA as funções de Diretor do Teatro encomendada pela ordem homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode de Ópera de São João e de mestre compositor ser posta ao lado das grandes obras, compostas da Real Capela. José Maurício continua, todavia, durante o mesmo período, dentro da história compondo ocasionalmente para a instituição da música ocidental. a pedido de D. João, que o tem em grande estima.13 Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra, Através da amizade com o compositor austríaco contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph e interesse por músicos e pesquisadores Haydn – que veio ao Brasil em uma missão brasileiros e estrangeiros. diplomática promovida por Luís XVIII de França
1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ. 2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816. Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897. 3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício e Carlos Gomes I. São Paulo: Companhia Melhoramentos/ Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930. 4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura/MEC, 1970. 5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/ INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,
44
1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/ INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981. 6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01, edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994. 7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia – biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/ Departamento Nacional do Livro, 1994. 8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983. 9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação das músicas destinadas às cerimônias religiosas. 10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos de excelência na criação e execução musical para as festividades
religiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana, principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa, importante centro de formação de músicos portugueses em todo o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V, destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I, mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo (1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José manteve contato com importantes compositores italianos da época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa, tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal. “[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e, à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical, iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778. Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício. “Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura, nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP, setembro de 1990, p. 662-669). 11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808 pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico. 12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67. 13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim, músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808 e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um
DISCOGRAFIA
OFFICIUM 1816 Camerata Novo Horizonte de São Paulo Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil LAUDATE DOMINUM DOMINE JESU TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS TE DEUM (1799?) Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil TE DEUM (1801) Americantiga Coro e Orquestra de Câmara Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações Musicais,Vol.II - Brasil MOTETOS PARA SEMANA SANTA CALÍOPE Direção: Júlio Moretzohn CALÍOPE MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL LAUDATE DOMINUM DIES SANCTIFICATUS JUSTUS CUM CECIDERIT LAUDATE PUERI Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França
orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele. Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer. Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o autor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atração segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e, de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122. 14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In: Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Cultural de Curitiba, 1999, p. 397.
RICARDO BERNARDES Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001. Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.
45
A MODINHA E O LUNDU NO BRASIL As primeiras manifestações da música popular urbana no Brasil EDILSON VICENTE
C
om crescimento populacional que vinha se acentuando desde o início do século XVIII e a formação de centros urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo tipo de entretenimento por parte de uma classe média emergente era condição imperiosa para a manutenção de um modelo de cultura que a metrópole, no caso Portugal, vinha impondo à colônia. Antes dos concertos públicos, que só viriam a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery, 1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII; as festas profanas, tais como aniversários de cidades, membros da família real ou alguma figura importante pertencente à classe dominante; as festas religiosas, que também tinham funções sociais.
46
DE
LIMA
Uma outra forma de entretenimento que vinha sendo praticada no Brasil desde meados do século XVIII era a música patrocinada por proprietários de posses, que mantinham orquestra formada por escravos negros especialmente treinados para executarem os mais diversos instrumentos (violinos, viola, teclado, charamelas, dentre outros). As músicas que interpretavam eram os sucessos europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982). Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados e para convidados especiais.
Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa. 1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa. Na Officina Nunesiana. Anno 1798. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por conseguinte, de divulgação da música cultivada pela classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde músicos amadores e profissionais podiam se irmanar, tocando ou cantando suas peças preferidas. Era também a oportunidade para as moças das finas famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua encantadora voz acompanhada pela delicadeza do dedilhado na guitarra (Nery, 1994). Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência, pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças públicas. Desta forma, sem querer adentrar as discussões sociológicas quanto às condições sociais das diversas camadas que residiam no Brasil em meados do século XVIII, ainda que altamente europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo seu próprio caminho musical à medida que as vilas se desenvolviam. É nesse ambiente e condições sociais que, nos últimos anos do século XVIII, surge a modinha, um tipo especial de canção que será cultivada tanto em Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de canção lírica, singela e de duração reduzida, composta para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse, pouco a pouco, um veículo para a expressividade musical, tanto portuguesa quanto brasileira. As discussões pela definição da paternidade da modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas pátrias como filha legítima. Mais do que o local de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma determinada nação que definem uma nacionalidade. Porém, a origem da modinha está intimamente relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora, que em meados do século XVIII, designava, genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas
48
Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida, de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963). Ao absorver dessa última as características formais e melódicas, a modinha se configura de maneira muito rica, não assumindo uma forma específica. Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso. Mário de Andrade, no texto introdutório de sua antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais, defende que o diminutivo “modinha” está intimamente relacionado com as características “acarinhantes” tão presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta característica, por sua vez, é descrita com muita graça no refrão da modinha “Quando a gente está com a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta
doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que vi me fazem babar”. No final do setecentos, literatos e cronistas portugueses diferenciavam a modinha portuguesa da brasileira e atribuíam a esta características próprias advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador português Manuel Morais descreve algumas delas: melodia ondulante, cromatismos melódicos e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos acrescentar: melodias entrecortadas e compostas de motivos sincopados, ora em retardo, ora em antecipação, abuso de cadências femininas, porém, sempre primando por uma certa delicadeza (Lima, 2001). O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil, que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa (Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que considera característicos do estilo brasileiro e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois poemas utilizados nas modinhas desta coleção como sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre, também conhecido pelo nome árcade de Lereno Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio improvisador e, naturalmente, tangia sua própria viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu no último quartel do século XVIII até sua morte. Tornou-se muito popular na corte por sua atuação como poeta e cantor de modinhas. Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813. Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa utilizou em seus poemas e que muito se assemelham ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito Modinhas do Brasil acima citado: neologismos afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”; também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande
sucesso no período em que viveu na corte onde era muito comum apresentar-se acompanhado por sua viola e cantando modinhas. Com base na análise poético-musical efetuada no manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas Barbosa, Béhague sugere que, se não todas as modinhas da coleção, grande parte delas é de Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características musicais consideradas brasileiras presentes em muitas modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase sincopada, que no caso dessas peças, aparece totalmente incorporada ao estilo musical, indicando uma prática adquirida naturalmente, ou seja, pela convivência, e não pelo resultado de estudos técnico-analíticos. No estágio em que se encontram as pesquisas sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos Caldas Barbosa musicados por compositores de renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830), compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil em 1811 e aqui permaneceu até sua morte; e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico português de renome em Lisboa no final do século XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura do compositor da melodia, porém é muito provável que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”, e por isso não tivesse o hábito de assinar suas composições, pois consta que não era iniciado nos cânones musicais (Sandroni, 2001). Fato é que, na documentação pesquisada até o presente momento, há uma grande quantidade de modinhas que se destacam por possuir uma musicalidade muito própria: melodias sinuosas de poucos compassos e compostas por pequenos motivos, a presença da síncopa melódica, o acompanhamento em arpejos de quatro colcheias, parafraseando as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto nestas características pois elas serão associadas ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968). Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil é de fundamental importância, pois, das trinta 49
Domingos Caldas Barbosa. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
modinhas que compõem a coleção, várias trazem marcadamente estas características (Lima, 2001). Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos, com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida pelos portugueses e todas as influências italianas incorporadas no decorrer do século XVIII; mas, certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta em várias modinhas desse manuscrito, associada ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere a elas um caráter muito particular, antecipando em aproximadamente um século as características musicais que vão ser associadas ao choro, ao maxixe e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima. A partir dessas afirmações, podemos concluir que, apesar de nossa dependência política, certas características musicais e poéticas reputadas ao Brasil, inclusive por portugueses já no último quartel do setecentos, apontam para um direcionamento próprio, pelo menos no que tange à produção musical. 50
Neste momento não podemos deixar de falar do lundu, dança popular brasileira introduzida no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos, muito popular em meados do século XVIII (Andrade, 1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança já como um resultado da confluência de elementos da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada por negros e mestiços no decorrer do século XVIII e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas, atestando ainda mais a sua popularidade na época. O lundu era dançado, tendo como acompanhamento o batuque dos negros e instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se popular por seus elementos coreográficos: a famosa umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991). A convivência entre negros livres e cativos, a classe média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas musicais da recatada modinha, dando origem ao lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas modinhas quase lundus, como destaca Mozart de Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos da cultura da classe média européia e da cultura popular afro-brasileira. É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado, já no século XVIII, em espetáculos para divertir cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que, apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas, mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado, e, certamente, influenciou músicos e poetas que não poderiam ficar imunes aos seus feitiços. Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção, doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário simples, predominância da tonalidade maior, linha melódica sincopada e geralmente composta por fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com relação ao texto, há predominância do uso da quadra com versos em redondilha maior e uso de refrão (Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001). No século XIX, encontramos lundus estilizados, escritos em compasso binário composto, antecipando, ou já dentro de uma tradição romântica. Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se verdadeiros meios da expressividade musical tanto popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos como José Maurício e Marcos Portugal; também por Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por VillaLobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras décadas do século XX. Na vertente popular, serviram de suporte para músicos como Xisto Bahia e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer, de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX, incorporaram-se ao repertório de espetáculos populares e serviram de crônicas à sociedade de então, como no famoso lundu Lá no largo da sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção
DISCOGRAFIA
MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d. CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989 COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII, Américantiga, 2003 MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997 MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994 1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d 20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm. São Paulo: BIEM, 1998
e aos desmandos econômicos da época. Finalizando, não obstante a origem aristocrática da modinha, praticada, inicialmente, nos salões cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados, aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila, foi absorvendo características musicais e poéticas das manifestações advindas das classes econômicas menos privilegiadas, irmanando-se ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse caminho rumo a aceitação de todos, ambos, a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último passo para diluir-se na alma!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.
ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiania, 1989.
LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000.
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1963
NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991.
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596: two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”, Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV, 1968.
NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”. Lisboa: Movieplay, 1994.
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982. _________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.: Ed. UFRJ 2001. TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo: Art. Editora, 1991.
EDILSON VICENTE DE LIMA Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo. Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.
51
CONSIDERAÇÕES SOBRE
LUIZ AGUIAR
F
ora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes. Apesar da existência de uma série de livros, biografias e citações em diversas enciclopédias universais, o que se tem visto e lido é um amontoado de informações baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante de equívocos que vão se sedimentando... Esses equívocos vão desde a data do nascimento de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas informações se baseiam no livro escrito por sua filha, Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente, descreve seu pai como de origem espanhola, descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai... Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por sua vez era filho de português com negra. A mãe de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol, pois, em sua descendência. Outro equívoco que se perpetua e continua sendo divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito. Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande
54
veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua família. Neste particular é bastante conhecida a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira grande emoção que a música de Verdi provocou no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história de seu primeiro contato com um “spartito” de Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada, revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima, em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos, compõe para os instrumentos que dispunha na Banda em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte placida”). Solos alternados de trompete e clarineta. Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em compasso ternário, quase uma valsa. Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos
esquecer – isto é muito importante – da influência francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência da “Grand Opera”. Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava. Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!! Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro Alla Scala”: 02/janeiro – I Lombardi – Verdi 19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota 02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi 23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer (em italiano, bem se vê) 10/março – Le Aquille Romane – Chélard 26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella 31/dezembro – Norma – Bellini A temporada prossegue pelo ano de 1865 com Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) – Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano), do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris, somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874 (Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio, Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893. Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que a ópera estava prestes a sofrer uma renovação. Paralelamente a este momento, a este auto-exílio de quase 17 anos, eclode o movimento dos “scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um “scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático ao movimento de renovação da ópera e das artes em geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio, Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa
Carlos Gomes. Figurinos da ópera Lo Schiavo. Assinado por Luigi Bartezago. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
55
56
Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas. É possível que Carlos Gomes tenha influenciado, com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade melódica, harmônica e rítmica, aos compositores contemporâneos daquele movimento. Na verdade, a noite de 19 de março de 1870 (estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca uma época na história da ópera. O autor, jovem maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido. O libreto, baseado em romance de outro brasileiro desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais, presença de um cacique aimoré, antropófago e que, também, se apaixona pela moça branca, filha de um fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo bastante estranho; e o 3º ato – Campo dos Aimorés – com suas danças, evocações a Tupã, utilização de instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás... Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava novos caminhos: tendência à melodia infinita; abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios, quartetos, alternando com recitativos; música mais adequada ao texto, num desenvolvimento natural e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário, uma forte tendência na criação de situações dramáticas com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes de uma determinada personagem ou situação; temas musicais com grandes saltos melódicos ascendentes e descendentes realçando uma certa virilidade em seus meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta aumentada e sétima diminuída, modulando com elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas o grande progresso, rumo à personalíssima caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet (1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876), a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,
Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo que havia se evidenciado, de forma discreta, em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com o enriquecimento de novas combinações tímbricas na orquestra, resultando uma instrumentação plena de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos mais belos momentos líricos de toda a história da ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873, conheceu o sucesso em 1878, já reformulada. É muito importante realçar que Carlos Gomes não é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura, impropriamente chamada de protofonia. Por que não nos referimos a esta abertura com o seu título original – sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como
Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth.
Carlos Gomes. Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA
57
era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma outra história. Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe? com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de mim distante...”). Mas param por aí. Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil, a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva confundir conscientização com engajamento. Monarquista convicto e declarado, grande admirador DISCOGRAFIA
IL GUARANY Plácido Domingo Verónica Villarroel Carlos Álvarez Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling Sony SK66273 / 2 CDs COLOMBO Inacio de Nonno Carol Mc Davit Fernando Portari Maurício Luz Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar UFRJ MUSICA - emufrj - 004 ABERTURAS E PRELÚDIOS Orquestra Sinfônica Brasileira Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98 SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU” Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112 Videos VHS e CDs
FOSCA Gail Gilmore Krassimira Stoyanova Roumen Doykov Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia Reg.: Luís Fernando Malheiro FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997 MARIA TUDOR Eliane Coelho Kostadin Andreev Elena Chavdarova-Isa Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia Reg.: Luís Fernando Malheiro FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998
58
de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto, a favor da causa abolicionista. Possuidor de um temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista (que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso. Jamais um mesquinho. Romântico por natureza, mas suas óperas estão apoiadas no realismo, na corrente naturalista que desembocaria no “verismo” (de vero = verdade). As personagens das óperas de Carlos Gomes são humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas, mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889) e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor), de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de “crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não era mais o centro do mundo musical. A Itália, também, volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental. É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que, em última análise, é um quarteto de cordas com o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu último movimento – “vivace” leva o sub-título de Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida. O romantismo musical brasileiro encontra, de fato, sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito Batista Filho chega a afirmar que “genialidade é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes: De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859. De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância considerável por terra e mar. A chegada na corte imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional). Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas... As duas primeiras composições importantes, as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março e 16 de agosto, respectivamente. Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em
português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres (1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863) a Milão (1864), passando por Portugal e França, em busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de luminosidade crescente, com momentos de escuridão, depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que, certamente, constitui uma página das mais belas da História do Brasil.
Funerais do maestro Carlos Gomes. Fotografia assinada por Fidanza. 1896. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações, que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo: 1) Óperas completas, estreadas e muitas vezes apresentadas: 9 a) em português – A Noite do Castelo – 1861 Joana de Flandres – 1863 b) em italiano – Il Guarany –1870 Fosca –1873 Salvator Rosa –1874 Maria Tudor –1879 Lo Schiavo –1889 Condor –1891 Colombo –1892 (na verdade um poema vocal – sinfônico mas claramente pensado como ópera) 2) Revistas musicais (vizinhas das operetas), estreadas e inúmeras vezes encenadas: 2 Se sa minga –1867 Nella luna –1868 3) música vocal de câmara: 47 (5 em português, 2 em francês, 1 em dialeto veneziano e 39 em italiano) 4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1) a) São Sebastião – 1856 b) Nossa Senhora da Conceição – 1859 c) Sem título específico – 1852 5) Partes avulsas de missas (inacabadas (?) - perdidas as demais partes (?) a) Kyrie – 1865 b) Qui tollis – ? c) Credo – ? 6) Música instrumental de câmara: 4
a) Aria para clarineta e piano – 1857 b) Al chiaro di luna (para bandolim ou violino e piano) – ? c) Sonata para quinteto de cordas (Burrico de Pau) – 1894 d) Variações para bandolim (Vem cá, Bitu) – ? 7) Música para piano: 36 (32 para piono solo e 4 para piano a 4 mãos) 8) Cantatas para coro masculino: 2 a) La fanciulla delle Asturie – 1866 (coro e piano) b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano) 9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4 a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui nesta cidade) – 1855 b) Aria do alfaiate (Senhor mestre, veja lá) – ? (na verdade um dueto) c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni rumor) 1872 d) Mama dice (anteriormente composta para canto e piano – 1882 e em 1892 orquestrada pelo próprio compositor) 10) Coro “a capella” : 6 a) Fugas tonais – 1866 b) Fugas reais – 1866 11) Música orquestral: 3 a) Variações sobre o tema do romance Alta Noite – 1859 b) Lalalayu (anteriormente compsota para piano – 1866 e em 1867
orquestrada pelo prórpio autor) c) Eva (valsa) – 1871 12) Música para banda: 4 a) Parada e dobrado sobre motivo da ópera “O Trovador”- 1856 b) “L’Oriuolo” (galope) composta em 1888, posteriormente instrumentada para banda por Giuseppe Mariani – 1891 c) Ao Ceará Livre – 1884 d) Cruzador Escola “Benjamin Constant” – 1893 13) Música para coro e banda: 2 a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar) – 1883 b) A Camões ( O teu dia irromperá da história) – 1880 14) Música para coro, banda e orquestra: 3 a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso suol) – 1876 b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884 c) Coro triunfal – também conhecido como Hino Progresso (Pela estrada de flores repleta) – 1885 15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ? 16) Óperas inacabadas: 2 a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) − 1871 (2 atos completos somente para canto e piano) b) Morena – 1887 (idem)
LUIZ AGUIAR Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.
59
CHOPIN CARIOCA Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento técnico da música de concerto com elementos populares
T
ALEXANDRE PAVAN
odas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram escritas para piano. Porém, ele só foi ter um instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos de São Paulo, depois de uma temporada na cidade. Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos ou de lojas de música onde trabalhava. Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro, em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um despachante aduaneiro e de uma pianista amadora, de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelo virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade, ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma queda que provocou hemorragia no ouvido direito, causando problemas auditivos que o acompanhariam pelo resto da vida. Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição, a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante, Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar
os estudos pianísticos, mas por falta de recursos o projeto foi cancelado. A falta de dinheiro foi constante na vida de Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias mais virtuosas que suas peças musicais para poder sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava em clubes que detestava e acabou arriscando até mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês. Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth continuava compondo. Mesmo sem o merecido reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana da música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmica incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso, sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande variedade de fórmulas, empregou nas suas composições uma ciência rítmica, uma beleza harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica que o tornam de fato o expoente máximo da música popular brasileira e um autêntico precursor
Ernesto Nazareth em São Paulo em 1926. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
60
da nossa música erudita de caráter tenha sido apresentado aos ilustres nacional”, escreveu o musicólogo autores brasileiros da época, Brasílio Itiberê. Milhaud surpreendeu-se mais com Essa característica da obra os sons da rua do que com aqueles de Ernesto Nazareth trouxe mais das salas de concerto. “Seria de problemas do que dividendos ao desejar que os músicos brasileiros autor: o povo não gostava muito compreendessem a importância Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora. de suas composições, porque não Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d). dos compositores de tangos, FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – eram dançáveis, e os estudiosos de maxixes, de sambas DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO torciam o nariz por considerarem e de cateretês, como (Marcelo) Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês. as peças com pouco valor como obras de concerto. Realmente, o pianista carioca deve tê-lo Durante um bom período, garantiu o aluguel impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos como pianista da sala de espera do Cine Odeon, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur os espectadores se dirigiam ao cinema cerca Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de de uma hora antes do filme começar para ouvirem mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais os instrumentistas tocarem. No Odeon, também uma vez não lucrou nada com a história. se apresentava a pequena orquestra do maestro Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos o problema de audição agravado, mas, por motivos era violoncelista. econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai, e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth de internação. Às vésperas do carnaval de 1934, classificadas desta forma nada têm a ver com a música escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias. portenha. Era apenas uma denominação mais Foi encontrado morto – por afogamento – próximo aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades a uma cachoeira. de sua obra com os gêneros populares – como o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando as chances de ela ser editada. Alguns tangos de Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo a praxe da época, quando as editoras compravam as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro das vendas para os compositores. Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão da escultora Camille Claudel) transferiu-se para a embaixada francesa no Brasil e trouxe como acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora
DISCOGRAFIA
SEMPRE NAZARETH (Kuarup), de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim) ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana (violino) e Sebastião Vianna (flauta) ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano) RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup), de Radamés e Aída Gnattali (piano) Inclui obras de Radamés Ganattali
ALEXANDRE PAVAN Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.
61
O Modernismo
62
Musical Brasileiro LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG
O
objetivo deste artigo é retratar a geração de compositores brasileiros ativos durante a Primeira República até o limiar da década de 1920. Tradicionalmente considerados românticos − como Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald (1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou, alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (18631934) − essas caracterizações remetem a um ponto de referência: a Semana de Arte Moderna. Esse acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como evento que inaugura simbolicamente o modernismo”. (Travassos, 2000; 17). Em outras palavras, a (des)qualificação desses compositores se dava pela maior ou menor proximidade de suas obras com os ideais desse marco zero, dividindo os períodos históricos em antes e depois da Semana. Os critérios utilizados para as definições de modernidade foram “a ênfase na atualização estética e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso modo pelo romantismo, na música, e pelo parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19) e no modernismo nacionalista. Com base nesses critérios, os escritos tratavam de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista e o ultrapassado, entre o independente e o
Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917. COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO
subserviente. Em suma, entre o nativo original e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos. De acordo com essa concepção, os artistas da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos, levando a frente um projeto estético e ideológico cujo objetivo era transfigurar a identidade e o centro ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como o centro irradiador. Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988), um dos ideólogos e porta-voz do movimento modernista de 1922: “Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’, entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo continua e continuará com a batuta e liderança [...]”. (Picchia apud Brito, 1971; 171) Na mesma linha, Guilherme de Almeida (18901969) se refere que “São Paulo devia, par droit de conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178). Como resultado, aos compositores da geração anterior seriam passadistas, copiadores da Europa, tributários a uma estética que não mais representaria a sociedade de então, colaboradores na perpetuação de valores já ultrapassados. Entre esses compositores, alguns mereceram a qualificação de precursores, já que não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na melhor das hipóteses, ao romantismo tardio. Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna” (Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores. 63
No entanto, por mais significativos e escandalosos que tenham sido os resultados obtidos no evento paulista, os programas musicais apresentados não se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria “uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas) e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de a própria formação desses modernistas estar vinculada ao “passado”. Em outras palavras, os resultados apresentados durante a Semana de 22 não se deram por um processo de “geração espontânea”, e sim já eram gestados e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram os “bandeirantes” que abriram o caminho para os artistas da Semana, que sobre seus ombros
Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago, 1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
64
e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito. Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana de 22 manifestavam uma “preocupação febril de atualização com referência às vanguardas européias e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977; 66), de onde se interpreta que um compositor como Nepomuceno estava comprometido com a tradição, cabendo aos “novos modernos” os louros da atualização e do progresso. Tal afirmação pode ser contestada por artigo de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicale e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud, Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada com partituras de música contemporânea. Entretanto, cita somente os compositores e associações francesas, como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie, a Société Musical Independante e a Schola Cantorum, entre outros. A atualização do meio musical carioca era tal que, ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo e Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satie que eu conhecia até então muito imperfeitamente e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente bem toda a música contemporânea” (Milhaud apud Wisnik, 1977; 40). Dois outros relatos se referem a essa ênfase contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se da série de 26 concertos realizados durante a Exposição Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI. Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se dizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial no século XX” (Azevedo, 1956; 171). De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve um momento em que as circunstâncias permitiram a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos nossos compositores e uma série luminosa da mais moderna literatura musical estrangeira”. (Barbosa, 1940; 28). A abrangência do repertório apresentado demonstrou que a relação de compositores estrangeiros
dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia aos franceses, como descrito por Milhaud alguns anos mais tarde, mas também incluía russos e alemães, além de brasileiros. Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas (1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937), Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros. Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna (1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917), Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896), Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros. Com base na relação de compositores apresentados durante os concertos da Exposição Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento onde a intolerância estética não teria espaço. Assim, Carlos Gomes, compositor representativo do período imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava ao lado de republicanos românticos e modernos, adeptos das escolas germânica e francesa. Daí vislumbra-se, também, que a formação do público de concerto estava entre os seus objetivos. Reforça essa conclusão a respeito da atualização do modo de recepção o relato do pianista português José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram “os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic) de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela música [...]”. (Melo, 1947; 290). A modernização pretendida no meio musical carioca se refletiu também na formação musical. Coube a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das principais escolas de música européias, culminando com a publicação do relatório Organização dos Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890. A qualidade e o grau de seriedade de seus professores e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos artísticos de que dispõe o Rio é que a associação [de Concertos Populares] não tem dificuldade
Luciano Gallet. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”. (Melo, 1947; 291). Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns exemplos da música de Alberto Nepomuceno mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo, escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros procedimentos modernos. Também seguem a mesma trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle). Merecem citação à parte as considerações a respeito do Trio em fá sustenido menor, de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que “Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal do Commercio o Trio em fá sustenido menor de Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical e saudada por Luiz de Castro como o produto de um compositor que se tornou completamente moderno” [grifo nosso] (Pereira, 1995; 304). Pereira ainda relata o fato de que os compositores franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux (1863-1919), recém chegados de Buenos Aires, compareceram a esse concerto de 1916. Ao final, ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno declarando Vous avez débuté par un coup de maître! (Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de 65
Nepomuceno, Messager declarou a música brasileira da escola alemã, que a obra colocava o autor entre os considerada moderna, afastando-a do melhores da música moderna (Pereira, lirismo excessivo da escola italiana. Assim, Brahms e Wagner foram op. cit.; 305). Darius Milhaud modelos em detrimento de Rossini concordava com essas considerações e Verdi. No entanto, os programas e estava desejoso da publicação do musicais se mantiveram ecléticos. Trio para levá-lo para a Europa (Pereira, op. cit.; 308). Em um futuro não distante, Debussy, Após essas considerações, podeFauré, Sant-Säens, entre outros, seriam somados a esse grupo. se questionar a pretensão As trocas com a Europa também atualizadora, anti-passadista, dos moldaram o crescente nacionalismo “novos modernos”. A geração de Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos compositores da Primeira República Edição da Sociedade Brasileira perder de vista que, na época, a visão já se ocupava em manter-se de Musicologia. São Paulo. atualizada, já que as trocas com européia sobre o Brasil afirmava FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO a “impossibilidade de uma nação a Europa eram freqüentes, além de a formação de muitos desses compositores civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”. brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural na maioria das vezes, escolas progressistas. que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto, compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima. Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve com roupagem européia. O exemplo clássico são a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos (Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da música ser encontrada no artigo Compositores românticos popular urbana, eventualmente da popular rural brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). Para se ter em conta o espírito ou folclórica, representada pela Série desbravador desses compositores, vale Brasileira ou o prelúdio O Garatuja, lembrar que até por volta de 1880, de Alberto Nepomuceno e pelos ópera e bel canto eram sinônimos Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto de música no Brasil – e no restante Nazareth. Um grande passo nesse da América. Foi a partir dessa década caminho nacionalista foi a odisséia que se deu efetivamente a introdução nepomucena de escrever canções da música sinfônica e camerística nos sobre poemas em português, feito que eventos musicais brasileiros, tendo ainda sequer havia se concretizado em Miguez, Oswald e Nepomuceno Portugal, segundo Viana da Mota. como grandes divulgadores. Continuando a migração dos pólos, As mudanças de meios de chega-se ao extremo oposto, onde expressão e gosto pretendidos não a música brasileira se vestiria de Leopoldo Miguez. Desenho assinado visaram a substituição da ópera pela acordo com a sua sonoridade nativa, por Henrique Bernardelli em 1903. música sinfônica ou de câmera. independente da citação folclórica. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Tinham como objetivo aproximar Foi um dos caminhos trilhados por 66
Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas. Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão comum nas categorizações. São simplesmente visões distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido pelas dinâmicas sociais de cada período histórico. Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”, para os compositores do período aqui tratado, apresentarem-se plenas de preconceito e presas ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22. Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior intimidade com a música brasileira mostra-se não procedente. Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes, desajeitadas as realizações musicais desses compositores brasileiros, mais acadêmicas do que revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam perturbadoramente, eram objeto de discussão e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através delas, que novas perspectivas puderam ser abertas e processos mais amplos para a expressão musical foram conquistados. Portanto, o período da Primeira República, mostra-
DISCOGRAFIA
NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR, PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio
Dell’Arte, 1995
Sony Music Entertainment NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981 MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO.VL. − Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998 OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9.VL Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo Martins. FUNARTE. 1998 LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/ Souza Lima. Festa BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus
se uma época muito rica para a música brasileira. A eterna atualização estética junto com a afirmação da identidade brasileira, pelo auto-conhecimento de suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletem um “período mágico”, onde “reside a essência do verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”. (Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se e virou Nacionalismo Musical Brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956. BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39. BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000. MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947. PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política:
Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (18641920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1995. REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/ 95. p.51-76 WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS). Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
67
Henrique Oswald e os Românticos Brasileiros
Em Busca do Tempo Perdido EDUARDO MONTEIRO
T
alvez não haja melhor expressão do que garimpo musical para descrever os primórdios das pesquisas musicológicas no final da década de 1940 no estado de Minas Gerais. Isto porque foi necessário muita paciência, perseverança, uma boa dose de sorte e um olhar clínico para se começar a descobrir as verdadeiras preciosidades que jaziam nos porões das cidades históricas em meio a antigos manuscritos musicais, até então considerados “papel velho, bom para queimar”. As mesmas montanhas que no século XVIII haviam presenciado a corrida do ouro – que fez florescer subitamente toda a região, produzindo uma cultura musical importante, soterrada pela ação do tempo – foram, no século XX, testemunhas de um novo rush, este mais discreto, protagonizado por musicólogos que se debruçaram sobre esse patrimônio da cultura brasileira, até então ignorado. Quase espremidos entre a produção surpreendente dos antigos mestres da música colonial mineira e os feitos merecidamente louvados de Villa-Lobos (18871959) e demais membros do nacionalismo musical pós-semana de 1922, encontra-se toda uma geração de autores que encarnam o romantismo brasileiro. São eles Carlos Gomes (1839-1896), Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald (1852-1931), Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Francisco Braga (1868-1945), para citar os mais representativos.
68
Diferentemente dos autores mineiros, a produção dos românticos nunca chegou a ser de fato esquecida, mas por outro lado, também não teve a sorte de ser plenamente “redescoberta” e assim repercutir com seu real valor. Parece, ao contrário, aguardar pacientemente o dia em que finalmente será reconhecida em sua magnitude. Quanto mais se estuda e conhece o conjunto da obra desses compositores, torna-se evidente sua excelência técnica e profunda inspiração. Não obstante, sua obra sofre uma espécie de preconceito latente na historiografia musical brasileira, ainda fortemente baseada na tradição fundada por Renato Almeida e Mário de Andrade. Na maior parte da literatura especializada, encontra-se uma tendência a qualificar esses autores segundo seu grau de envolvimento com a construção do mito do nacionalismo musical. Chegou-se assim, de forma velada, a uma equação simplista, na qual a importância do compositor é determinada pelo índice de características nacionais de sua obra. O distanciamento no tempo preservou os mestres mineiros desse tipo de julgamento, mas o mesmo não aconteceu com os românticos. Esses carregam até hoje o injusto fardo de serem autores supostamente influenciados em demasia pela cultura européia. O destino acabou sendo um pouco mais complacente com Alberto Nepomuceno e Carlos
Henrique Oswald. Il neige. Obra premiada no concurso promovido por “Le Figaro”: “1er. Concours de morceaux pour piano”. 8 de novembro de 1902. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Gomes. Mesmo estando Nepomuceno, musicalmente, mais próximo do velho continente que de Villa-Lobos, este autor é freqüentemente evocado na literatura tradicional como sendo o “pai” do nacionalismo, devido à sua batalha pela valorização do canto em português. Quanto a Carlos Gomes, sua importância como operista para o Brasil jamais poderia ser negada. Felizmente, a temática indianista de Il Guarany, mesmo que cantada em italiano, forneceu elementos concretos para serem louvados pelos defensores do nacionalismo. A sorte foi mais madrasta com Leopoldo Miguez e Henrique Oswald. É comum encontrar nos livros de história da música brasileira uma censura mais ou menos explícita a estes autores em função da ausência de características nativas em suas peças. Miguez é invariavelmente acusado de wagneriano. A Oswald cabe normalmente o termo “afrancesado”. Apenas duas considerações deveriam ser
necessárias para refutar este olhar preconceituoso. Inicialmente, é preciso ter consciência que embora haja um sentimento pátrio desde o século XIX que se manifesta esporadicamente na produção dos românticos, o nacionalismo musical só se organizou efetivamente como movimento em fins da década de 1920, quando esses autores ou já haviam morrido, ou composto boa parte de sua obra. Em segundo lugar, deve-se constatar que a sociedade brasileira da virada do século XX sofria de fato forte influência da cultura européia. Era portanto de se esperar que a música desses compositores refletisse essa realidade. No caso específico de Oswald, a identificação com a Europa é inerente a seu histórico de vida. O autor de Il neige!... – sua obra mais célebre, para piano solo – nasceu no Rio de Janeiro em 1852 e, como boa parte dos compositores da época, era filho de europeus. A vinda de seus pais para o Brasil em 69
1850 insere-se no amplo movimento migratório verificado no século XIX. Entretanto, os Oswald nunca pretenderam trabalhar na lavoura, como era o objetivo da maior parte deste contingente. O pai, Jean-Jacques, suiço-alemão, possuía um ofício – era comerciante – e algum capital. Homem empreendedor, depois de um início difícil no Brasil, quando teve negócios malogrados e chegou mesmo, por razões ideológicas, a ser perseguido por membros da oligarquia cafeeira paulista, acabou prosperando com seu negócio de pianos na pacata São Paulo dos anos 1850-60. A mãe, Carlotta Cantagalli, uma italiana com boa formação intelectual, era uma mulher de fibra que assumiu, quando foi preciso, as despesas da casa com suas aulas de piano, francês e italiano. O retorno da família à Europa, mais especificamente a Florença, aconteceu em 1868, e teve como objetivo principal o aprimoramento musical de Oswald, que se deu junto aos excelentes mestres do DISCOGRAFIA Discos Compactos:
CARDOSO, André, MONTEIRO Eduardo. “En Rêve”; “Andante con Variazioni para piano e orquestra”. In: Leopoldo Miguez e Henrique Oswald – Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ., Rio de Janeiro: UFRJ/Música, 2004 DUARTE, Roberto Ricardo. “Elegia”. In: Música Brasileira Vol. I Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ.. Rio de Janeiro: UFRJ, 1991 KLINCK, Paul, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald. Music for violin and piano. Ghent: PKP, 1995 GUIMARÃES, Maria Inês. Henrique Oswald. Piano Music. Munique: Marco Polo, 1995 RUBIO, Quarteto, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald – Quarteto para piano e cordas op. 26; Sonata-Fantasia op. 44; Concerto para piano e orquestra op. 10. São Paulo: Revista Concerto, Série Música de Concerto / USP / De Rode Pomp, 2002 Discos de vinil:
DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald – Obras para piano e violoncelo e piano. Rio de Janeiro: Funarte, 1982 FUKUDA, Elisa, DEL CLARO, Antônio, MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald – Trio em sol menor op. 9, Sonata em Mi maior op. 36. Rio de Janeiro: Funarte, 1988 SILVA, Honorina. Documentos da Música Brasileira Vol. 11 - Honorina Silva interpreta Henrique Oswald. Rio de Janeiro: Funarte / Promemus, 1979
70
Regio Istituto Musicale di Firenze, destacando-se Giuseppe Buonamici e Reginaldo Grazzini. Na Itália, Oswald casou-se com Laudomia Gasperini, teve quatro filhos e por 35 anos atuou como pianista, professor e compositor de prestígio no meio musical florentino. Mas os vínculos com a pátria jamais foram desfeitos. A partir de 1879 foi bolsista do Imperador D. Pedro II; entre 1896 e 1900 veio quatro vezes ao Brasil para realizar concertos, obtendo grande projeção; e finalmente ocupou o cargo de Chanceler no Consulado Brasileiro no Havre por um curto espaço de tempo entre 1900 e 1901. 1902 é o ano que marca a grande reviravolta em sua vida. Contando 50 anos de idade, obtém o primeiro lugar em um concurso de composição organizado pelo jornal Le Figaro de Paris. No júri, ninguém menos que os ilustres compositores Gabriel Fauré e Camille Saint-Saëns, além do grande pianista Louis Diémer. Cabe a ressalva que os segundo e terceiro lugares foram atribuídos aos hoje renomados Alfredo Casella e Florent Schmitt. Essa premiação abre uma possibilidade de penetração na vida musical parisiense, a grande vitrine da época. Por outro lado, esta vitória também projeta fortemente o nome do compositor em terras brasileiras. Em conseqüência, no ano seguinte, Oswald é convidado para ser diretor do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, a instituição musical de maior prestígio da República. O convite era irresistível e Oswald acaba por aceitá-lo. No entanto, o compositor foi hostilizado como um “estrangeiro” na direção da Instituição, cargo político para o qual não possuía nenhuma vocação. A demissão é finalmente aceita após 3 longos e sofridos anos. Entre 1906 e 1911, Oswald passa por um momento de crise e indecisão, envolvendo seu retorno à Europa, onde deveria tudo recomeçar, ou sua permanência no Brasil, onde ainda havia muito por se fazer. Mas, por fim, sua nomeação para a cátedra de piano no Instituto e a vinda de toda a família em 1911 deixam claro que a opção pelo Brasil era irreversível. Em seus últimos 20 anos no Rio de Janeiro, Oswald goza de grande reputação e prestígio como compositor e professor de piano. Sua morte, aos 79 anos de idade, se dá em meio a homenagens e pleno
reconhecimento como um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Itália e Brasil, os dois países nos quais o compositor viveu, tinham em comum um meio musical que privilegiava a ópera e no qual a música instrumental – solo, de câmera e sinfônica – estava Henrique Oswald. ainda em florescimento e por esta razão era fortemente calcada nas tradições alemã e, posteriormente, francesa. Embora tenha composto três óperas – uma delas um trabalho de juventude – Oswald foi predominantemente um compositor de música instrumental, e desta forma sofreu influência dos quatro países acima mencionados. Esta multiplicidade de fontes de inspiração, que proporcionou o desenvolvimento de uma escrita altamente refinada, deveria ser vista como um fator de riqueza e não como uma justificativa para a falta de interesse pela música nacionalista. Há outros aspectos muito mais relevantes que a questão do sentimento nativista a serem abordados em sua obra, como por exemplo a importância da contribuição para os gêneros sinfônico e camerístico aportados por sua produção à música do país. Oswald não foi o primeiro brasileiro a escrever obras deste tipo, mas é, no que tange a música de câmera, um dos autores nacionais mais significativos. A qualidade e o volume de sua produção são a prova disso: Sonata para violino e piano, duas Sonatas para violoncelo e piano, cinco Trios para violino, violoncelo e piano, dois Quartetos e um Quinteto para piano e cordas, quatro
Quartetos de Cordas, um Octeto para cordas, além de várias pequenas peças para violino e violoncelo com acompanhamento de piano. O Trio op. 9, obra-prima de sua primeira fase que testemunha ainda a influência do romantismo alemão, seria uma composição digna de figurar no catálogo de Felix Mendelssohn. A Sonata para violino e piano op. 36, que marca sua aproximação da escola francesa, poderia eventualmente ser tomada por uma peça de Fauré ou César Franck. Já a 2me Berceuse para violino e piano vai mais longe e se avizinha do universo de Ravel. Porém, infelizmente, este repertório é praticamente ignorado por nossos músicos. Mas a herança de Oswald é ainda muito mais ampla, abrange uma grande quantidade de peças para piano, Prelúdios e Fugas para órgão, duas sinfonias e várias transcrições de obras pianísticas para orquestra sinfônica e de cordas, três concertos para instrumento solista e orquestra, obras para canto e piano, canto e orquestra, coro, incluindo duas Missas, coro e orquestra, além das três óperas já mencionadas. Embora possa-se observar que é crescente o número de pesquisadores nas universidades brasileiras que se debruçam sobre seu legado, o que mostra que há um processo de revalorização em andamento, a passagem praticamente em branco do sesquicentenário do compositor no ano de 2002, indica que Oswald está longe de ocupar o lugar que lhe cabe como um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. A cultura nacional seria a principal beneficiada se fosse abandonado o tom predominantemente condescendente com que o compositor é abordado em favor de um verdadeiro reconhecimento de seu valor e, sobretudo, se Oswald fosse mais executado em nossas salas de concerto. É necessário recuperar o tempo perdido!
SUGESTÕES DE LEITURA:
MONTEIRO, Eduardo. Henrique Oswald (1852-1931), un compositeur brésilien au-delà du nationalisme musical. L´Exemple de sa musique de chambre avec piano. Doutorado em Musicologia. Paris: Sorbonne, 2000.
MARTINS, José Eduardo. Henrique Oswald, músico de uma saga romântica. São Paulo: EDUSP, 1995.
EDUARDO MONTEIRO Prof. Dr. do Departamento de Música da ECA-USP, é Dr. em Musicologia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne, com tese sobre a música de câmera com piano de Henrique Oswald.
71
Heitor Villa-Lobos M O D E R N O
E JORGE COLI
N A C I O N A L
A SEMANA DE ARTE MODERNA, EM FEVEREIRO DE 1922, OCORREU EM S. PAULO. ELA PROVOCOU GRANDE ESCÂNDALO E POLÊMICA, APRESENTANDO NOVIDADES QUE, NO MEIO ACANHADO DAS ARTES PAULISTAS, PARECIAM RADICALISMOS DE VANGUARDA. AS NOVIDADES EM MÚSICA FORAM TRAZIDAS POR UM JOVEM COMPOSITOR, HEITOR VILLA-LOBOS. ALÉM DE SEUS PROPÓSITOS DE RUPTURA ESTÉTICA E ARTÍSTICA, PAIRAVA, DURANTE A
SEMANA , UM VAGO TOM NACIONALISTA, E RONALD DE CARVALHO RECONHECIA, EM VILLA-LOBOS, UMA AFIRMAÇÃO DE ARTE “NACIONAL”.
1922
foi o centenário da independência do Brasil, momento de carga simbólica, que sugeria uma equivalente autonomia cultural do país. No entanto, é no correr dos anos de 1920 que o modernismo brasileiro tomará, de fato, cores nacionalistas. É por volta de 1930 que esse projeto, moderno e nacional, vai se encontrar afirmado, com o romance “Macunaíma”, de Mário de Andrade, com o movimento Antropofágico, de Oswald de Andrade. Mário de Andrade teorizará a questão musical a partir desse enfoque em seu “Ensaio sobre a música brasileira”, de 1928. No entanto, vista de perto, a musicalidade profundamente brasileira, que revestiu-se de um aspecto de mito com a música de Villa-Lobos, parece bem mais ambígua. Trabalhar sobre Villa-Lobos é, de qualquer forma, delicado. Existem, está claro, algumas boas biografias e estudos, e um arrolamento catalográfico de suas obras. Mas eles são insuficientes, e seu catálogo crítico não foi ainda estabelecido. É preciso desejar muita paciência para quem decidir organizá-lo, porque o próprio Villa-Lobos encarregava-se de falsificar dados com uma ousadia e uma impudência ímpar.
Como descobrir a data exata de várias de suas composições se Villa-Lobos empregava um critério cronológico “espiritual” ou “espírita”, como diz Mário de Andrade em “O mundo musical”? Villa-Lobos fazia recuar várias composições em vários anos. Uma das intenções esperadas era demonstrar que o caráter brasileiro de sua música existia desde cedo, mesmo quando ele compunha, de fato, num espírito inteiramente francês e internacional. Era uma legitimação de precocidade nacionalista. Assim, uma atitude necessária para, no mínimo, qualquer precaução metodológica no que concerne ao estudo da obra do compositor, é levar a todas as conseqüências as observações de Lisa Peppercorn em seu artigo publicado em “The Music Review”, de fevereiro 19431 , referentes a antedatação de suas peças. Mário de Andrade retoma essas indicações em “O mundo musical”2 . Essas conseqüências impõem a precaução prévia de não se poder confiar nas informações de Villa-Lobos. É preciso, no que concerne às datas, que provas documentais realmente insuspeitas venham garantir a referência. E isto, como veremos, é capital – entre outras coisas − para se 73
UMA DAS INTENÇÕES ESPERADAS ERA DEMONSTRAR QUE O CARÁTER BRASILEIRO DE SUA MÚSICA EXISTIA DESDE CEDO, MESMO QUANDO ELE COMPUNHA, DE FATO, NUM ESPÍRITO INTEIRAMENTE FRANCÊS E INTERNACIONAL. ERA UMA LEGITIMAÇÃO DE PRECOCIDADE NACIONALISTA. compreender a célebre “alma brasileira”, que seria própria a Villa-Lobos. Mário de Andrade raciocina: “Inquieta com esses arranjos muitas vezes feitos sobre obras... ainda não escritas, e visivelmente informada pelo próprio compositor, a crítica (Lisa Peppercorn) nos conta que ‘Villa-Lobos chama isso reescrever uma obra, sendo interessante também que essas músicas são datadas do ano em que foram espiritualmente concebidas, e não do momento em que foram realmente compostas’. Eu tenho a idéia de que essa foi a explicação inventada por Villa-Lobos no momento, para justificar as suas audácias, mas desde muito me sinto na obrigação de duvidar das datas com que o grande compositor antedata muitas de suas obras, na presunção de se tornar genial pioneiro em tudo. No número de Música Viva3 dedicado a Villa-Lobos a que o autor do Amazonas forneceu a relação de suas obras, estas vêm acompanhadas cuidadosamente das datas em que foram, digamos, “espiritualmente” ou “espiritistamente” concebidas... Por desgraça, nem isso é verdade, e custa a crer que o artista se arrojasse a semelhantes ilusões. Aí Villa-Lobos coloca certas obras brasileiras dele nas décadas de 1910 e 20, como as Cirandas e as Cirandinhas, que foram muito posteriormente tanto compostas quanto concebidas”.4 Mário de Andrade revela então a história das Cirandas, que ele estimulara e acompanhara a criação, testemunhando assim sobre o caráter fantasioso das afirmações do compositor. É legítimo ainda indagar o que significam, realmente, as viagens iniciáticas e míticas da juventude de Villa-Lobos pelo Brasil afora, enquanto contribuição para sua brasilidade compositiva, tal como ele as propalava? Marcel Beaufils, através do testemunho de Casadesus e Vasco Mariz, num artigo de Lucie
74
Delarue-Mardrus, narra histórias inverossímeis contadas por Villa-Lobos em Paris: ele teria sido feito prisioneiro dos índios. Aproveitava então para aprender de cor os belos cantos dos selvagens que o torturavam. A alguém que lhe perguntava se, por acaso, teria, nessas ocasiões, praticado a antropofagia, ele confessa ter comido carne de criança com os índios. Teria tocado, num fonógrafo, música ocidental: enfurecidos, os índios precipitavam-se para destruir o aparelho. Mas, substituindo a gravação, a máquina transmitia canções indígenas e se transformava imediatamente em divindade: diante dela, toda a taba se prosterna em adoração. Ironia, imaginário, blague e impostura se mesclam. Até onde pode, de fato, ir nossa confiança nos testemunhos do compositor a respeito de seu período de formação, enquanto todas as fontes não forem controladas? Mário de Andrade lembra, em “Villa-Lobos I e II”5 , o caráter altamente internacional das peças apresentadas pelo compositor na Semana de Arte Moderna, e isso porque Villa-Lobos não devia ter muita coisa “brasileira” para mostrar. É fato que suas composições anteriores a 1922 são, em sua esmagadora maioria, de um galicismo indiscutível: da admirável sonata para violino e piano Desespérance (em francês no título!) – onde a presença de Franck e Chausson talvez seja menos superficial que a de Debussy, esta última lembrada por Eurico Nogueira França6 ; ao Naufrágio do Kleónicos, onde o cisne negro que sobreviveu canta como o de Saint-Saëns; passando por Izaht, cujo libreto, escrito pelo compositor, coloca em cena apaches de Montmartre; ou pelas sinfonias de guerra (a sinfonia Vitória comporta uma citação da Marselhesa e é composta sobre o modelo cíclico de Vincent d’Indy); e chegando à Prole do bebê, de insofismável debussysmo. Como já foi assinalado, as Cirandas e cirandinhas
aparecem como desse período na relação de obras oferecida pelo compositor – Mário de Andrade denuncia a fraude – e hoje nenhuma cronologia séria aceita tal datação. O caso de Uirapuru, desse ponto de vista, é particularmente interessante. Com Amazonas, é considerada a primeira franca irrupção de “brasilidade” dentro da obra do compositor. Ora, Uirapuru foi estreado em Buenos Aires, em 1935. Bruno Kieffer, em seu Villa-Lobos e o modernismo da música brasileira7 , a partir de Peppercorn, assinala que Villa-Lobos, “em 1917, teria apenas composto o projeto para piano de Uirapuru, elaborando somente em 1934 a partitura para orquestra”. Kieffer examinou os originais autógrafos da partitura para piano e orquestra: “Ambas têm a assinatura de Villa-Lobos no cabeçalho e a indicação: ‘Rio 1917’. No fim da partitura para orquestra consta: “Fim Rio, 1917, reformado em 1934”. Segue a rubrica do compositor. Cremos que também do ponto de vista grafológico há identidade entre os cabeçalhos da partitura para a orquestra e a redução para piano.” Mas, o episódio das Cirandas indica que, com Villa-Lobos, todas as fraudes eram “cuidadosamente” possíveis, mesmo a de inscrever uma data muito anterior sobre uma partitura – com o álibi de ali assinalar uma primeiríssima proto-concepção da obra. Mário de Andrade não acreditava muito, também, na data de origem de Amazonas. Neste caso, seja como for, existe uma primeira composição, de 1916, executada em 1918, baseada num conto do pai de Villa-Lobos, Myremis; em Amazonas, Villa-Lobos meramente substitui nomes e personagens. A “bela virgem grega, abençoada pelos deuses da mitologia” torna-se “bela virgem, abençoada pelos deuses das florestas do Amazonas”, assim como o rio se transmuta de Archeló em Amazonas. A trama é sensivelmente a mesma8 , ou seja, bastou uma mudança rápida e superficial de nomes e lugares, num tema originalmente clássico, grego, que lhe inspira a música, para que a obra se transformasse numa
Villa-Lobos. Caricatura assinada por Mendez em 1974. MUSEU VILLA-LOBOS
expressão de nacionalidade autenticamente brasileira... No que concerne a Uirapuru, resta o fato, até prova do contrário, de que não existe notícia da obra anterior a 1934, quando é dedicada a Serge Lifar. Com as chaves que Mário de Andrade nos fornece, é possível compreender o fenômeno. Basta assumirmos que, bel et bien, Villa-Lobos simplesmente pré-datou as obras. Isto é fundamental, porque permite derrubar por terra o mito, a crença numa brasilidade autenticamente surgida da personalidade de Villa-Lobos, impregnada de um ser “nacional” desde sua gênese infanto-juvenil. Ao invés do mito prodigioso, teríamos o “constructor”, a posteriori, muito mais plausível. Pois é preciso lembrar que, de todos os modos, apenas com os Choros, nos anos de 1920, o caráter francamente brasileiro de Villa-Lobos se afirma. Isto é, no momento de suas longas e freqüentes estadas em Paris. 75
76
Villa-Lobos. Quarteto symbolico. Original manuscrito autógrafo. Obra executada na Semana de Arte Moderna. MUSEU VILLA-LOBOS
“Ao visitar Paris e o restante da Europa na década de 20” – escreve o musicólogo finlandês Eero Taarasti 9 – “Villa-Lobos compreendeu qual a posição social do compositor na Europa naquele momento: ele interessava ao mundo musical europeu acima de tudo como um intérprete de brasilidade, com os ritmos de força primitiva de suas composições, harmonias próprias, melodias folclóricas que refletem a variedade das cores do trópico.” Parece bem claro que Villa-Lobos fazia “render” o exotismo. Villa-Lobos sabia que os europeus desejavam “les saveurs et les accents de sensuel exotisme”, na imagem que Cortot, em seu La musique française de piano10 , criou para caracterizá-lo e a Darius
76
Milhaud. Genialidade à parte, Villa-Lobos escrevia então música brasileira na Europa, garantindo, assim, seu lugar de compositor “tropical”. Eram os mesmos tempos em que Paulo Prado dizia que Oswald de Andrade descobrira o Brasil na Place Clichy, inventando a Antropofagia em Paris. Portanto, Villa-Lobos fazia música brasileira na Europa, assegurando assim seu lugar de compositor tropical. Quando Henri Prunnières exalta o caráter exótico das obras que Villa-Lobos apresenta na Europa, Mário de Andrade se escandaliza, porque Prunnières se atém ao pitoresco e faz dele a grande virtude dessas composições. Mário de Andrade não demonstra consciência
de quanto Villa-Lobos é cúmplice desse estado de coisas e se revolta, porque seu projeto é alguma coisa de “profundo” e de “sério”: nada de brasileirismos para francês ouvir, mas a construção consciente de um inconsciente artístico, coletivo e brasileiro. Sobre Villa-Lobos, no “Ensaio sobre a música brasileira”, Mário de Andrade afirma: “Mesmo antes da pseudo-música indígena de agora, Villa-Lobos era um grande compositor”. Florent Schmitt dizia que Villa-Lobos era um “neo-selvagem” e, na época, convergiam para a Europa as selvagerias do mundo inteiro: isto, está claro, porque elas eram solicitadas. A ditadura Vargas fez de Villa-Lobos seu aliado oficial. A conseqüência foi a modificação profunda, a partir dos anos de 1930, na produção artística do compositor. A associação de Villa-Lobos com o Estado Novo, além de um programa de músicas de propaganda e um outro pedagógico, nas escolas, tornou o compositor menos “ousado”. Sua música perde o caráter “moderno” que possuía nos anos de 1920, quando dialogava estreitamente com as experiências de vanguarda do tempo. Villa-Lobos, músico oficial, ou quase, passou a produzir composições que se queriam brasileiras, mas que se queriam também “grandes obras”: é a partir de 1930 que renascem os quartetos de cordas – quintessência das formas “clássicas” – abandonados desde 1917, e as sinfonias. É quando, também, Villa-Lobos inicia o belíssimo ciclo das Bachianas Brasileiras – no entanto
muito mais bem comportadas que os Choros e outras produções feitas na Europa, durante o período precedente. Após a Segunda Guerra Mundial, no final de sua vida Villa-Lobos se aproxima dos Estados Unidos. Tende, então, a afastar-se dos projetos nacionais de seu passado. O musical Madalena joga com uma certa ironia sobre seus temas de colorido brasileiro.
1. PEPPERCORN, Lisa M. “Some aspects of Villa-Lobos’ Principles of Composition, The Music Review, vol IV, nº1, fevereiro de 1943.
6. FRANÇA, Eurico Nogueira. A evolução de Villa-Lobos na música de câmara, SEAC-MEC-Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro, 1979
2. Apud COLI, Jorge. Música final, Editora da Unicamp, 1998, pgs. 169 e segs.
7. KIEFFER, Bruno. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira, Movimento, Porto-Alegre, 1981, pg. 47.
3. O texto ao qual Mário de Andrade se refere aqui é “Casos e fatos importantes sobre H. Villa-Lobos numa biografia autêntica e resumida”, in Música Viva, Ano 1, 7/8, janeirofevereiro 1941, pg. 13-15.
8. Cf., particularmente, a análise de WRIGHT, Simon – VillaLobos, Oxford University Press, Oxford, 1992, pg. 13.
DISCOGRAFIA
VILLA-LOBOS PAR LUI MÊME (EMI): 6 discos que reúnem a quintessência do compositor, dirigindo ele próprio os coros e Orchestre National de la Radiodifusion Française, nos anos de 1950. Contém as 9 Bachianas, com a mítica gravação da nº 5, cujo solo é feito por Victoria de los Angeles, vários Chôros, a Suite Descoberta do Brasil, o Momoprecoce, com Magda Tagliaferro, o Concerto nº 5, com Felicia Blumental, e a Sinfonia nº 4 HEITOR VILLA-LOBOS − OEUVRE POUR PIANO (DISQUE DU SOLSTICE): monumento da discografia pianística, são 7 cds com todas as composições para piano solo, interpretadas por Anna Stella Schic VILLA-LOBOS − 5 PIANO CONCERTOS (Decca) − Cristina Ortiz, Royal Philarmonic Orchestra, dir Gómez-Martínez (2
CD)
CHÔROS DE CÂMARA (ed. brasileira: Kuarup, ed. internacional Harmonia Mundi) - esplêndido disco por um conjunto de músicos brasileiros, que tocam os 9 choros camerísticos de Villa-Lobos QUARTETOS DE CORDA (Kuarup), pelo Quarteto Bessler-Reis, numa caixa de 6 CDs MAGDALENA, A MUSICAL ADVENTURE − Gravação completa do musical composto por Villa-Lobos para a Broadway, em 1948, com Judy Kaye, George Rose, Faith Esham, Orchestra New England, sob a direção de Robert Sher
4. Apud COLI, Jorge. Op. cit., pgs 169 e segs, pg. 383.
9. TAARASTI, Eero. “Villa-Lobos – ser sinfônico dos trópicos”, in Presença de Villa-Lobos nº 9, MEC-SEAC-Museu VillaLobos, Rio de Janeiro, 1980, pg. 56.
5. In “Mundo Musical”, apud COLI, Jorge – Música Final, op. cit., pg. 169 e segs.
10. CORTOT, Alfred. La musique française de piano, PUF, Paris, 1991.
JORGE COLI Prof. Dr. titular em História da Arte e da Cultura. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas UNICAMP.
77
O violão no Brasil depois de Villa-Lobos FÁBIO ZANON
C
omo o café e o futebol, o violão está indissociavelmente ligado a uma visão sóciocultural do Brasil, e nossa identidade musical é impensável sem a sua presença. E não é para menos. Instrumentos da família do violão foram já trazidos pelos jesuítas e usados na catequese, e José Ramos Tinhorão afirma que “todos os exemplos de cantigas urbanas entoadas a solo por aqueles inícios do século XVI revelam em comum o acompanhamento ao som de viola”. Dessa forma, desde o primeiro encontro que define nossa identidade cultural, o violão está presente. Mas sua trajetória é tortuosa. O violão em seu formato atual é, na verdade, um desenvolvimento organológico do séc. XIX. Os instrumentos trazidos pelos jesuítas provavelmente foram as vihuelas, alaúdes e violas – as quais, simplificadas, tornaram-se guitarras barrocas – que, levadas ao interior do país pelos bandeirantes, foram adotadas como o instrumento folclórico nacional por excelência: a viola caipira. Isto, conjugado à marcada diferença cultural entre as classes sociais no período imperial, estigmatizou o violão – como acontecia na Espanha – como o instrumento do populacho, dos capadócios e da marginalidade, em oposição ao piano, que realizava um ideal de bom tom das famílias urbanas mais abastadas. Até a metade do séc. XIX há uma certa confusão, como atestam as “Memórias de um Sargento de Milícias”, entre a viola e o violão, mas depois de 1850 já fica clara a diferença entre a viola, um instrumento tipicamente sertanejo, e o violão, ou a guitarra francesa (como era chamada nos métodos à venda no Rio de Janeiro), instrumento favorecido no acompanhamento do cancioneiro popular de tradição urbana. Até este momento, não há uma literatura específica para o instrumento publicada no país; os exemplos existentes são escritos para piano, sem dúvida pelo fato de não haver violonistas capazes de ler música. O violão também foi adotado como baixocontínuo dos incipientes grupos de choro, e a má fama decorrente é festejada nos romances de Lima Barreto. Os primeiros defensores sérios do violão como instrumento de concerto, como o engenheiro Clementino Lisboa, o desembargador Itabaiana e o
professor Alfredo Imenes, heroicamente se sujeitaram ao ridículo público ao se apresentarem, por exemplo, no Clube Mozart, centro musical da elite carioca. Os primeiros concertos de violão solo documentados no país foram oferecidos pelo violonista cubano Gil Orozco em 1904 e não chegaram a atrair muita atenção, mas supõe-se que já houvesse um ensino sério de violão clássico nessa época, já que Villa-Lobos admitiu haver aprendido violão pelos métodos do espanhol Dionísio Aguado (1784-1849). Entretanto, aquele que podemos apontar como o primeiro concertista brasileiro não sabia ler música e tocava com o violão invertido, mas com as cordas em posição normal: Américo Jacomino, o “Canhoto” (1889-1928). Canhoto era filho de italianos, o que ilustra uma nova tendência de popularização do violão: a sua adoção pela classe operária imigrante. Não é um mero acidente os luthiers Di Giorgio, Del Vecchio e Giannini terem se estabelecido no Brasil e transformado sua atividade artesanal em linha de produção de instrumentos dentro de poucas décadas. Mas o violão continuava sendo ridicularizado na imprensa, como alvo de charges derrogatórias, apesar do enorme sucesso popular de violonistas-compositores como João Pernambuco (1883-1947). O ano da “virada da casaca” é 1916, quando o crítico do jornal “O Estado de São Paulo” ouviu e se rendeu à arte do virtuose e compositor paraguaio Agustín Barrios (1885-1944), que residiu no Brasil em decorrência de seu sucesso. No mesmo ano, Canhoto apresentou-se no Conservatório Dramático e Musical com extraordinário êxito. “É através deste concerto que Américo Jacomino conquista a elite paulistana e assim, possibilita o início da dissolução do preconceito que freava o desenvolvimento da música para violão”. A partir de então, a imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro passou a considerar o violão como instrumento de concerto e até a elogiar Barrios, Canhoto e a espanhola Josefina Robledo, aluna de Tarrega que também residiu no Brasil por vários anos. Como vemos, talvez surpreendentemente, o violão como instrumento de concerto ainda não completou 100 anos no Brasil, o que faz da vulcânica 79
De todos os compositores que escreveram inspirados pela arte de Segovia, Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento para a realização de uma linguagem individual. personalidade de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) um fenômeno ainda mais singular. As contingências sócioculturais fizeram com que seu instrumento público fosse o violoncelo e que o violão fosse somente um laboratório de fundo-de-quintal, que ele utilizava para penetrar nas rodas de choro. A maior parte das obras que escreveu antes de 1920 perdeu-se, e a Suíte Popular Brasileira (1912-23) só foi publicada décadas mais tarde – à sua revelia – na França. É uma obra característica do período, onde a fronteira entre o idioma clássico e as formas de dança popular não é muito nítida. Por mais original e promissora que possa parecer a produção da primeira fase de Villa-Lobos, até 1922, há uma nítida mudança de marcha em sua estética que coincide com a residência em Paris nos anos 20, um fenômeno observado em outros compositores de orientação nacionalista. Parece que a distância e a receptividade do novo ambiente lhe permitiram realizar uma síntese entre uma visão pragmática, que aceita a superposição de influências externas como uma profecia auto-realizada em uma cultura colonizada, e uma visão idealizada, derivada de Rousseau, em que o compositor se via como um bom selvagem, corrompido por estas mesmas influências. A formidável série de Choros, as maiores obras para piano e os 12 Estudos para violão, compostos em 1929, 80
são os frutos mais suculentos dessa síntese. Seria absolutamente impensável a realização desta obra dentro do contexto acanhado do violão clássico no Brasil dos anos 20. Por mais divergências que Villa-Lobos possa ter tido com o dedicatário, Andrés Segovia, a personagem dominante do violão no século XX, foi, sem dúvida, o vislumbre das possibilidades latentes do violão, permitido pelo extraordinário poder persuasivo de Segovia, que estimulou Villa-Lobos a escrever uma coleção comparável às grandes séries de estudos para piano ou violino. Não é exagero dizer que os 12 Estudos são um divisor de águas dentro da história do violão. De todos os compositores que escreveram inspirados pela arte de Segovia, Villa-Lobos é o único que parte de um conhecimento em primeira mão do arcabouço técnico do instrumento para a realização de uma linguagem individual, que incorpora uma luxuriante paleta harmônica e um compromisso com a inovação no discurso musical. Prova da qualidade visionária destas obras é a espera, até 1947, para que Segovia as incluísse em seus programas e até 1953 para que fossem publicados. Neste hiato, Villa-Lobos já havia retornado definitivamente ao Brasil, e sua linguagem havia dado uma guinada na direção de um certo conservadorismo positivista e neo-clássico que pode ser detectado na sua série de 5 Prelúdios (1940). O legado de Villa-Lobos é tanto uma benção como um peso para os compositores da geração posterior. Seus Prelúdios e Estudos são as obras mais populares do violão no séc. XX, tocados por todos os violonistas de qualquer nível de excelência, e gravados centenas de vezes. Seu Concerto para violão e orquestra de 1951 é uma das poucas obras brasileiras, talvez a única, com lugar assegurado no repertório internacional do gênero. As possibilidades de reconhecimento internacional, assim abertas para um compositor brasileiro, podem ser um tremendo fator de inibição, pelo temor à epigonia. Some-se a isso o fato de que uma sólida cultura clássica para o violão ainda tardou algumas décadas para cristalizar-se no Brasil. O perfil de Barrios ou Canhoto não era suficientemente “clássico” para o projeto artístico de Villa-Lobos, e a importante
contribuição de professores como Attilio Bernardini (1888-1975) teve conseqüências mais visíveis no campo do violão popular. A distinção entre o violão de concerto e o violão popular foi gradualmente se acentuando nos anos 1930, 40 e 50 e alguns dos músicos de maior visibilidade, como Dilermando Reis (1916-1977), Aníbal Augusto Sardinha, o “Garoto” (1915-1955), e Laurindo de Almeida (1917-1995), construíram quase que a totalidade de suas carreiras à sombra da Era do Rádio, criando um vasto repertório seresteiro no caso de Dilermando, incorporando alguns elementos impressionistas que apontam para a bossa-nova no caso de Garoto, ou simplesmente estabelecendo-se nos EUA como um músico de jazz no caso de Laurindo. Não obstante as limitações destes grandes artistas na esfera do violão clássico, eles estabeleceram uma relação próxima e estrearam algumas obras do compositor que mais se esforçou em enfraquecer as barreiras entre a música clássica e a música popular de qualidade: Radamés Gnatalli (1906-1988), que assim tornou-se o autor da obra violonística mais significativa e numerosa a partir dos anos 50, incluindo 5 concertos para violão e orquestra (1952, 53, 55, 61 e 68). A advocacia de sua obra, ministrada mais tarde por violonistas da esfera clássica, estimulou-o a compor extensivamente e criar obras de considerável interesse, como a Brasiliana nº 13, a Suíte, os 10 Estudos, os 3 Estudos de Concerto e Alma Brasileira; seu legado se estende à música de câmara com a suíte Retratos para 2 violões, a Sonatina para flauta e violão, uma Sonata para violoncelo e violão e outra para violoncelo e 2 violões, além de inúmeros arranjos que incluem o violão num contexto semi-orquestral. A obra de violão de Gnatalli traz todas as melhores qualidades e os mais evidentes problemas de sua produção como um todo: a excelente escrita instrumental, as inesperadas soluções harmônicas e o verdor da inspiração, mas também a notória falta de paciência com o acabamento e um caráter sonambulístico e quase-improvisatório que, sob um certo ponto de vista, pode ser uma qualidade. Depois de Villa-Lobos, a obra de violão de Gnatalli é a mais apreciada e freqüentemente tocada no exterior.
Por um lado, o rádio enfraqueceu as distinções de classe através do gosto musical e transformou-as numa massa indistinta chamada “ouvinte”, disposta a ouvir o violão sem preconceitos; em 1928, o interesse pelo instrumento é vasto o suficiente para o surgimento de uma revista, “O Violão”, no Rio de Janeiro. Por outro, ainda faltava uma metodologia que permitisse o surgimento de um número significativo de concertistas de violão que preenchessem um vazio só ocasionalmente quebrado por raras visitas de artistas internacionais como Regino Sainz de la Maza, Andrés Segovia (a partir de 1937) e Abel Carlevaro (nos anos 40). O desenvolvimento desta metodologia veio com o uruguaio Isaías Sávio (1902-1977), que se estabeleceu em São Paulo nos anos 30. Sávio foi um concertista de modestos recursos, mas um devotado professor e autor de mais de 100 peças originais para violão, algumas das quais, como a Batucada das Cenas Brasileiras, perduram no repertório. Ele teve um papel considerável na promoção do violão dentro do establishment musical do país, publicou dezenas de métodos e arranjos, e formou gerações de violonistas que prontamente se estabeleceram como professores em outras capitais, com destaque para Antonio Rebello (1902-1965) no Rio de Janeiro. A Sávio também devemos a criação do curso oficial de violão nos conservatórios e, pouco antes de falecer, nas universidades. Ele teve a sensibilidade de não sufocar a natural vocação do violão brasileiro para o cross-over e, entre seus alunos, podemos contar tanto um Luís Bonfá ou um Toquinho quanto um Carlos Barbosa Lima. A relação de Sávio com os compositores “sinfônicos” foi algo tímida; a instrução dos compositores custou a incorporar a técnica de escrita para violão – uma novidade que Segovia havia imposto a compositores como Ponce e Turina nos anos 20 –, o exemplo de Villa-Lobos provou-se um ideal alto demais para se alcançar, e a falta de seriedade com que se encarava o violão no início do século ainda criou reverberações nos anos 40 e 50. Some-se a isso o desfavor em que a estética nacionalista caiu após a revolução de 1964 e temos um desconfortável e algo vergonhoso hiato na incorporação da obra de Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone ao 81
Almeida Prado. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
repertório internacional de violão. Camargo Guarnieri (1907-1993) seria, levando-se em conta seu implacável artesanato e concisão, o compositor ideal para dar continuação ao fio condutor de Villa-Lobos, mas na prática isso não aconteceu. Ele se exasperava com as dificuldades de se escrever bem para o instrumento, e seu único Ponteio (1944, dedicado a Carlevaro) para violão não tem o mesmo carisma dos homônimos pianísticos. Seus 3 Estudos (nº 1: 1958, nos 2 e 3: 1982), apesar de extraordinários como composições, apresentam um caráter torturado e esotérico que apela somente aos intérpretes mais intelectualmente inclinados. As 2 Valsas-choro (1954, 1986) são obras bem mais simpáticas, mas, como de praxe em Guarnieri, a 2a delas ainda não está sequer editada. Lorenzo Fernandez (1897-1948) foi ainda menos generoso: deixou somente um pequeno Prelúdio (1942) de parco interesse e um arranjo da Velha Modinha (1938, original para piano como parte da Segunda Suite Brasileira) dedicado a Segovia, que freqüentemente é tocado como bis. Se a contribuição destes compositores magnos de nosso nacionalismo é numericamente decepcionante, o mesmo não se pode dizer de Francisco Mignone (1897-1986). Suas primeiras tentativas de escrever para o violão foram bem modestas, mas em 1970 ele produziu a série de 12 Valsas, em todos os tons menores, e 12 Estudos que, sem manifestarem o ímpeto renovador de Villa-Lobos, ocupam uma posição quase
82
tão alta quanto a dele no repertório brasileiro pela precisão de escrita, inventividade no tratamento instrumental e variedade de expressão. Seu quase total desaparecimento do repertório internacional é um acidente de percurso, e nenhuma outra obra da escola nacionalista merece maior atenção. O mesmo deve ser dito do Concerto para violão e orquestra (1976), possivelmente a mais bem-concebida obra brasileira do gênero, mas que ainda não teve a chance de ser plenamente avaliada devido ao seu quase-ineditismo. Duas peças curtas, Canção Brasileira (1970) e Lenda Sertaneja (1982) completam um corpus de obras para violão de máximo interesse. A paixão de Mignone pelo violão em seu último período criativo foi causada em grande parte pelos frutos colhidos da profissionalização do ensino de violão no país. Os anos 60 e 70 marcam não só uma extraordinária expansão do ensino do violão popular com o advento da bossa-nova, mas também a consolidação da carreira internacional de uma geração: Carlos Barbosa Lima (n.1944), Turíbio Santos (n.1940), Sérgio (n.1948) e Eduardo Abreu (n.1949), Sérgio (n.1952) e Odair Assad (n.1956) e, mas tarde, Marcelo Kayath (n.1964). A percepção do Brasil como o país do violão deve muito a estes dois eventos conjugados. O cenário nacional também se beneficiou desse arranque e uma nova geração de didatas se estabeleceu neste período, com destaque para Henrique Pinto (n.1941) e Jodacil Damasceno (n.1929). Junto com Isaías Sávio, esses violonistas foram o ponto de referência para toda uma geração de compositores nacionalistas que deixaram itens isolados de considerável interesse, como José Vieira Brandão (1911-2002) com o Mosaico, Walter Burle-Marx (19021991), autor de Bach-Rex e Homenagem a Villa-Lobos, Souza Lima (1898-1982) com seu Cortejo e Divertimento, e Lina Pires de Campos (1918-2003), autora de 4 Prelúdios e Ponteio e Toccatina. Três compositores já falecidos merecem uma menção particular pela sua importância dentro da vida musical brasileira: Cláudio Santoro (1919-1989), autor de um Estudo, um Prelúdio e da Fantasia Sul América; Theodoro Nogueira (1913-2002), autor de extensa obra que inclui 6 Brasilianas, 5 Valsas-Choro, 4 Serestas, 12 Improvisos e um
Concertino para violão e orquestra; e César Guerra-Peixe (1914-1993) autor de 6 Breves, 10 Lúdicas, 4 Prelúdios e da primeira Sonata brasileira para violão, de 1969, uma obra extremamente engenhosa da sua fase nacionalista. Os anos da ditadura militar provocaram uma dramática re-configuração da vida musical do país. A considerável repressão da liberdade de expressão forçou artistas e intelectuais a tomarem posições drásticas. Compositores de tendência governista não tiveram sucesso em persuadir as autoridades da necessidade de um desenvolvimento contínuo da educação musical, e tiveram de responder por isso depois da abertura nos anos 80. Uma maioria de compositores opostos ao regime refugiou-se na rotina do ensino universitário e, seguindo o modelo americano, cristalizou um sistema de ensino acadêmico que prescinde da atuação no dia-a-dia do compositor profissional e encoraja o surgimento de “processos” composicionais que muitas vezes só podem ser decodificados por colegas. Ao mesmo tempo, a participação ativa dos cantores/compositores de MPB no processo de abertura política relegou os compositores clássicos a uma posição secundária dentro do meio cultural e a um recrudescimento do interesse da imprensa pela produção de concerto, uma situação que não parece passível de reversão num futuro próximo. O violão, como um natural mediador, no Brasil, entre o universo da música clássica e da popular, encontrou-se subitamente numa posição privilegiada. Intérpretes como Barbosa Lima, Turíbio Santos e o duo Assad, inicialmente escolados na tradição clássica do violão, hoje atuam numa tênue linha divisória em que a fronteira entre o que é clássico e o que é música instrumental brasileira não é muito clara. Os compositores ativos criaram seus nichos estéticos, muitas vezes opostos, e foram seduzidos pela garantia de inclusão de suas obras para violão no repertório regular. Os compositores de orientação pós-nacionalista que mais contribuíram para o repertório brasileiro são Marlos Nobre (n.1939) e Edino Krieger (n.1928). A obra de Marlos Nobre é extensa e de incalculável
alcance artístico. Os Momentos I-IV, a Homenagem a Villa-Lobos, as Reminiscências, o Prólogo e Toccata, a Entrada e Tango, as Rememórias e o Concerto para 2 violões e orquestra cobrem 30 anos de produção artística, atestam sua imaginação poderosa e o colocam como um verdadeiro herdeiro de Villa-Lobos, em sua escrita detalhada, robusta realização instrumental e perfeito equilíbrio entre a cor local e as necessidades de um argumento formal de maiores proporções. A considerável dificuldade técnica de suas obras tem se mostrado um fator inibidor, e Nobre é, num plano internacional, mais respeitado que tocado, mas este é um fator que deve ser superado em favor de obras de qualidade superlativa que merecem atenção incondicional. Já Edino Krieger obteve considerável sucesso com sua Ritmata de 1974, e suas obras mais recentes, Passacaglia in Memorian Fred Schneiter e seu Concerto para 2 violões e orquestra parecem prontas a seguir o mesmo caminho. Um compositor de produção mais mirrada, mas de sumo interesse, é Osvaldo Lacerda (n.1927), autor de três encantadoras peças, Moda Paulista, Ponteio e Valsa Choro. Um item isolado de Ronaldo Miranda (1941), Appassionata, tem merecido uma calorosa acolhida internacional; a Sonatina de José Alberto Kaplan (n.1935) e a peça de mesmo título de Sérgio Vasconcelos Corrêa (n.1934), também autor de um Concerto, demonstram grande profissionalismo de fatura. A produção dos compositores independentes, seguindo a esfera de interesse dos intérpretes a quem é dirigida, cobre um amplo espectro de possibilidades estéticas. Almeida Prado (n.1943) realizou experimentos com a sonoridade, comparáveis às suas Cartas Celestes para piano, em Livre pour Six Cordes e Portrait de Dagoberto, dedicado ao violonista paulista radicado na Suíça, Dagoberto Linhares, mas sua Sonata oscila entre uma energia “prokofieviana” e um nacionalismo desbragado. Outro prolífico compositor de música para violão é Ricardo Tacuchian (n.1939), cuja produção pende entre o nacionalismo urbano da Série Rio de Janeiro e da Imagem Carioca para 4 violões e o experimentalismo sonoro das duas Lúdicas e dos dois Impulsos para dois violões. A exploração de técnicas pouco convencionais 83
encontra em Sighs de Jorge Antunes (n.1942) e no Estudo nº1 para violão e narrador de Rodolfo Coelho de Souza (n.1952) o seu canal de vazão. A polissemia produziu ao menos uma obra de interesse permanente, Que Trata de España de Willy Corrêa de Oliveira (n.1938). A proliferação de concertistas de atuação local e as óbvias vantagens da colaboração entre eles e compositores ainda não plenamente estabelecidos têm criado espaço para uma atividade extensa, frenética e difícil de avaliar, mas eu apontaria os nomes de quatro compositores nascidos depois de 1960 que apresentam todas as condições para uma plena aceitação no repertório internacional: Alexandre de Faria (n.1972), cuja Entoada foi agraciada com o primeiro prêmio no Concurso Internacional “Andrés Segovia” de composição em 1997, e que desde então tem escrito obras de extrema intensidade teatral, que absorvem alguns elementos do minimalismo, informadas por um raciocínio harmônico personalíssimo e de total intransigência de expressão: o Prelúdio nº1 - Olhos de uma Lembrança”e nº2 Death of Desire, além de dois concertos para violão e orquestra, o segundo dos quais, Mikulov , foi estreado com sucesso sem precedentes na República Tcheca; Artur Kampela (n.1960), cujas Danças Percussivas, também premiadas num concurso internacional na Venezuela, incorporam elementos DISCOGRAFIA
A OBRA PARA VIOLÃO DE AMÉRICO JACOMINO “CANHOTO”; Gilson Antunes, violão - independente VILLA-LOBOS - OBRA INTEGRAL PARA VIOLÃO SOLO; Paulo Pedrassoli, violão - UERJ clássica ALMA BRASILEIRA; Duo Assad - Nonesuch CONCERTO À BRASILERA; Daniel Wolff, Orq. de Câmara da ULBRA, Tiago Flores, reg. – independente GAROTO - O GÊNIO DAS CORDAS - gravações originais - EMI OBRAS DE CAMERON, AMARAL VIEIRA, CORTES, HOLLANDA CAVALCANTI E LINA PIRES DE CAMPOS; Sérgio Assad, violão- Acervo Funarte MÚSICA NOVA BRASILEIRA; Mário da Silva Jr, violão - independente MANHÃ DE CARNAVAL; Graham Devine, violão – Naxos LPs 12 ESTUDOS DE FRANCISCO MIGNONE; Carlos Barbosa Lima, violão MARLOS NOBRE: Yanomami, 3 Ciclos Nordestinos, 4 momentos; duo Assad, Dagoberto Linhares, violão RAFAEL RABELLO INTERPRETA RADAMÉS GNATALLI; Rafael Rabello, violão
84
de modulação rítmica; Alexandre Eisenberg (n.1966), autor de ambiciosos projetos formais de caráter mais tradicional como o Prelúdio, Coral e Fuga e a Pentalogia; e Marcus Siqueira (n.1974), dono de um refinado ouvido para colorido instrumental, que é ilustrado pelo Impromptu Fragile, Impromptu Móbile e Elegia e Vivo; seu concerto para violão, harpa, celeste e 2 orquestras de câmara Hoquetus, Ecos, Espelhos ainda aguarda estréia. Há também autores de itens isolados de alta qualidade, como Mikhail Malt (n.1957) e seu Lambda 3.99 para violão e sons gerados por computador; Achille Picchi (b.1957), de feição algo mais convencional e bartokiana, com seu Prelúdio, Valsa e Finale e 3 Momentos Poéticos para violão e orquestra; Harry Crowl (n.1958), de genuína erudição, autor de Assimetrias; e Roberto Victorio (n.1959), com seu Tetraktis e um Concerto para violão, flauta e orquestra. Todos estes compositores, com a provável exceção de Faria e Eisenberg, têm de conviver com a nova ordem: dificuldades para publicação, distribuição e registro fonográfico destas obras levam-nos à tábua de salvação das universidades e das sociedades e festivais de música contemporânea; uma aceitação menos circunscrita à sua área de atuação será obra do acaso e do interesse continuado dos intérpretes. Mais afortunados são aqueles que transitam na tênue linha entre o clássico, o jazz e o instrumental brasileiro. No mundo, e cada vez mais no Brasil, hoje, há uma verdadeira indústria de sociedades, festivais, editoras e companhias discográficas dedicadas exclusivamente ao violão “clássico”, e entenda-se por clássico não uma categorização estética, mas tão somente de técnica instrumental. Uma parcela significativa do público para estes eventos e produtos carece de uma ampla cultura musical e certamente não dispõe de elementos para uma apreciação crítica da produção contemporânea; normalmente são estudantes ou amadores sérios que travaram seu primeiro contato com o violão através do pop ou do jazz. O perfil deste púbico determina a aceitação internacional de compositores-violonistas como Sérgio Assad (n.1952) que, além de ser um dos integrantes do renomado duo Assad, tem intensificado sua produção nos últimos 15 anos; obras como Aquarelle, sua Sonata, a série
de Jobinianas, e várias peças para duo de violões como Vitória Régia, Pinote e Recife dos Corais já fazem parte do repertório regular de estudantes do mundo todo. A extensa, variada e instrumentalmente eficiente obra de Paulo Porto Alegre (n.1956), Daniel Wolff (n.1967) e Maurício Orosco (n.1976) parece destinada ao mesmo êxito. O traço que distingue estes compositores daqueles chamados violonistas “populares” é uma evidente ambição formal decorrente de sua atividade como concertistas. Compositores-violonistas cuja principal atuação é na área dos shows amplificados ou como acompanhantes de cantores ou solistas de jazz tendem a se encarar como herdeiros da tradição de Canhoto, Garoto, Dilermando Reis ou Baden Powell, e suas
obras são, conseqüentemente, restritas às formas de canção e dança, o que não as impede de serem adotadas amplamente como material de concerto mundo afora. Êxito incondicional tem obtido a obra de Paulo Bellinati (n.1950), cujo Jongo já foi gravado pelos mais destacados solistas internacionais e que já produziu centenas de obras na mesma veia, mas Marco Pereira (n.1955), Celso Machado (n.1953) e Guinga (n.1950) também têm uma ampla base de admiradores. Um caso singular encontramos em Egberto Gismonti (n.1944), celebrado internacionalmente como um dos maiores instrumentistas do jazz contemporâneo, mas cujas obras Central Guitar e Variations: Hommage à Webern se alinham à produção experimental de concerto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um Sargento de Milícias, 11a ed. São Paulo: Ática, 1980.
SANTOS, Turíbio. Heitor Villa-Lobos e o violão. Rio de Janeiro: Museu Villa-Lobos, 1975.
ANDRADE, Mário de. Música, doce música. São Paulo: Martins, 1963.
SUMMERFIELD, Maurice J., The Classical Guitar, its evolution, players and personalities since 1800, 5a ed. Blaydon-on-Tyne: Ashley Mark, 2002.
________. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1928. ANDRADE, Mário de, AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de, CHIAFARELLI, Liddy, MIGNONE, Francisco. A parte do anjo. São Paulo: Editora Mangione, 1947.
TARASTI, Eero. Heitor Villa-Lobos, the life and works. London: McFarland, 1995. TINHORÃO, José Ramos, História Social da Música Popular Brasileira, São Paulo: 34, 1998.
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
TONI, Flávia. Mário de Andrade e Villa-Lobos. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1987.
DUDEQUE, Norton. História do Violão, Curitiba: Editora UFPR, 1994.
VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri Expressões de Uma Vida. São Paulo, EDUSP, 2001.
FRANÇA, Eurico Nogueira. Lorenzo Fernandez, compositor brasileiro. Rio de Janeiro, 1950.
WRIGHT, Simon. Villa-Lobos. New York: Oxford University Press, 1991.
KIEFER, Bruno. História da Música no Brasil, vol.1. Porto Alegre: Editora Movimento/SEC-RS/MEC, 1976.
Enciclopédia da Música Brasileira. 2a ed. São Paulo, Art Editora Ltda., 1998.
_______. Villa-Lobos e o modernismo na música brasileira. São Paulo: Editora Movimento, 1981.
Artigos:
_______. Francisco Mignone, vida e obra. Porto Alegre, Editora Movimento, 1983. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil, 5a Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. _________ (coord.). Francisco Mignone, o homem e a obra. Rio de Janeiro, FUNARTE - EDUERJ, 1997. NEVES, José Maria. Música brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Ricordi, 1981. PEPPERCORN, Lisa. Villa-Lobos, the music. London: Khan & Averill, 1990.
BARTOLONI, Giacomo, O Violão em São Paulo in Violão Mandrião, www.violaomandriao.mus.br, s/d CASTAGNA, Paulo, Gilson Antunes, O Violão Brasileiro já é uma Arte in Ver. Cultura Vozes, nº 1, jan/fev/1994, p. 37. SIMÕES, Ronoel, O Violão em São Paulo in Violões & Mestres, Direção Nelson. Martins Cruz, nº 7, vol II, p. 25. WANDERLEY, Saulo, O dia em que o violão deixou de ser bandido in www.cafemusic.com, 1998.
FÁBIO ZANON Concertista, mestre pela Universidade de Londres e membro da “Royal Academy of Music” de Londres.
85
MúsicaViva CARLOS KATER
O
movimento Música Viva foi criado no Brasil em 1938, por obra de H. J. Koellreutter, sendo suas primeiras realizações e atividades efetivamente concretizadas no ano seguinte.1 Assim, desde 1939 e ao longo de toda a década de 40, vemos desenvolver-se um movimento pioneiro de renovação, tendo por meta instaurar uma nova ordem no meio musical, inicialmente no Rio de Janeiro e após em São Paulo. Suas principais características definem-se pelo ineditismo de propostas na área cultural, atualidade do pensamento musical, convergência com tendências estéticas, filosóficas e políticas da vanguarda internacional e assim gerador de dinamismo junto ao ambiente da época.2 De maneira geral, a importância do movimento Música Viva é ainda hoje sub-avaliada. Os jovens compositores Cláudio Santoro, César Guerra-Peixe, Eunice Katunda e Edino Krieger, entre outros músicos, liderados por Koellreutter, são não apenas responsáveis pela primeira fase da composição atonal e dodecafônica da música brasileira. Cabe a eles mais precisamente a criação de uma nova perspectiva da produção musical, imbricada numa concepção contemporânea da função social do artista. Enquanto movimento que foi, Música Viva gerou intensa dinâmica cultural, agregando ao amplo conjunto de atividades promovidas - concertos, audições experimentais, conferências, cursos, programas de rádio, edição de boletins e de partituras, etc – temas contemporâneos para reflexão e oportunidades instigantes para debates. Todas essas iniciativas ofereceram-se como ricas alternativas de participação, provocando um aceleramento na compreensão da arte, do músico e de seus respectivos papéis na sociedade de sua época. Música Viva foi um movimento musical concebido sob o tríplice enfoque: Educação (formação) – Criação (composição) – Divulgação (interpretação, apresentações públicas, edições, transmissões radiofônicas), que integrados tiveram intensidades proporcionais ao longo de sua existência. Podemos distinguir três fases em sua evolução, cada qual correspondendo a momentos ideológicos relativamente distintos. Elas refletem as posturas adotadas por seus Página ao lado: Hans-Joachim Koellreutter. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
principais representantes, determinando diretamente o percurso do movimento, tanto do ponto de vista histórico quanto estético. Isto porém em quase nada descaracterizará o impulso educacional e formador que tão fortemente impregnou o conjunto das atividades desenvolvidas. MOMENTO I
A primeira fase, integradora por excelência, é marcada pela coexistência interna de tendências estéticas e ideológicas bastante dessemelhantes, representadas pelos membros que constituem o grupo em sua formação original. Luiz Heitor Correa de Azevedo (musicólogo), Egydio de Castro e Silva (pianista e compositor), Brasílio Itiberê (compositor e professor), Octávio Bevilácqua (crítico musical do “O Globo”) e Andrade Muricy (escritor e crítico musical do “Jornal do Comércio”) são algumas das personalidades mais atuantes e conhecidas no ambiente musical carioca, que compõem o movimento nesta primeira fase.3 Essa tendência integradora se expressa igualmente na elaboração dos programas de concerto, nos quais mesclam-se músicas de Villa-Lobos e Camargo Guarnieri com aquelas de Koellreutter e Cláudio Santoro, acrescidas nos anos seguintes pelas de vários outros compositores, muito distantes tanto estética quanto ideologicamente. Mesmo que aparentando uma postura tradicional em razão desta constituição inicial, Música Viva reivindica já uma meta original: “divulgar o compositor e sua obra, principalmente a contemporânea”, diferentemente das sociedades musicais existentes no meio carioca da época que visavam realçar “o virtuose e o concerto”. Desde junho de 1939 têm início as “Audições Música Viva”, que inauguram publicamente o movimento, seguindo-se meses após os Concertos de mesmo nome. A primeira edição da série dos boletins Música Viva é lançada em maio de 1940, veiculando um balanço detalhado das atividades realizadas pelo grupo no ano anterior, entre textos de autores diversos, enfocando temas da atualidade, problemáticas da música contemporânea brasileira e, como suplemento, a modinha Sem fim, para canto e piano, de Fructuoso Vianna.4 89
A divulgação musical, sob diferentes formas, passa a recobrir um vasto espectro de tendências estilísticas, gêneros e períodos históricos, integrando ao panorama musical internacional tanto a frente nacionalista quanto a nova escola composicional brasileira, ainda incipiente. Proposta inusitada para o período, ela se tornará uma característica constante ao longo da trajetória do movimento, atendendo aos objetivos de acesso ao patrimônio musical já constituído e daquele em processo de consolidação, em vista da meta de revitalizar o ambiente artístico-cultural perseguida pelo Música Viva. Isto explica melhor as transformações operadas nos momentos seguintes, quando as músicas compostas pelo grupo de compositores, instaurando tendência experimental e maior maturação de inovações compositivas, suscitam um estilo crítico combativo particular nas comunicações do grupo. MOMENTO II
A segunda fase do movimento é inaugurada pelo lançamento de um importante documento, seu primeiro manifesto. Em 1º de Maio de 1944 − significativamente “dia do trabalho”−, o grupo Música Viva divulga um dos mais concisos e brilhantes manifestos brasileiros, o “Manifesto 1944”. Manifesto: O grupo Música Viva surge como uma porta que se abre à produção musical contemporânea, participando ativamente da evolução do espírito. A obra musical, como a mais elevada organização do pensamento e sentimentos humanos, como a mais grandiosa encarnação da vida, está em primeiro plano no trabalho artístico do Grupo Música Viva. Música Viva, divulgando, por meio de concertos, irradiações, conferências e edições a criação musical hodierna de todas as tendências, em especial do continente americano, pretende mostrar que em nossa época também existe música como expressão do tempo, de um novo estado de inteligência. A revolução espiritual, que o mundo atualmente atravessa, não deixará de influenciar a produção contemporânea. Essa transformação radical que se faz notar também nos meios sonoros, é a causa da incompreensão momentânea frente à música nova.
90
Idéias, porém, são mais fortes do que preconceitos! Assim o Grupo Música Viva lutará pelas idéias de um mundo novo, crendo na força criadora do espírito humano e na arte do futuro. Aldo Parisot, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, Egydio de Castro e Silva, João Breitinger, Mirella Vita, Oriano de Almeida, H. J. Koellreutter
O lançamento deste documento ilustra a intensificação das atividades do movimento no Rio de Janeiro e também a fundação de seu núcleo paulista. No início deste ano, Koellreutter havia começado a dar aulas de composição para Guerra-Peixe e logo após a Edino Krieger. Santoro, seu aluno desde 1940, obtém mais um prêmio: uma significativa “Menção Honrosa” no Chamber Music Guild, com o “Primeiro Quarteto”, composto em 1943. Ao mesmo tempo em que reorganiza a constituição do grupo5, Koellreutter implanta a bem sucedida série de programas radiofônicos levados ao ar junto à Rádio Ministério da Educação e Saúde (PRA-2), a partir de 13/05/1944.6 No entanto, o significado desse breve manifesto vai muito além do que habitualmente se considera. Ele é o reflexo inaugural do que hoje chamamos “música moderna brasileira”. Isto porque ao mesmo tempo em que através dele se busca a afirmação e a representatividade do movimento como um todo, coloca-se em primeiro plano uma criação musical de viva atualidade (original mas também em sintonia com correntes da vanguarda internacional), que passa agora a se beneficiar fertilmente das produções atonais nacionais, compostas por Cláudio Santoro7, Guerra Peixe8 e pelo próprio Koellreutter. Em fértil contraponto com a produção nacionalista do período, estas músicas novas contam com eficazes suportes de divulgação e têm sua qualidade artística quase unanimemente reconhecida pelos críticos. Embora com estilos próprios, elas possuem em comum um modelo estético definido, representando a nova escola de composição brasileira, frente única da vanguarda de seu tempo.9 A partir desse momento Música Viva se coloca em posição ofensiva, conquistando ainda mais espaço nos meios de comunicação. Nos depoimentos públicos, procurando explicar pontos de vista e justificar
Periódico Música Viva. Ano 1. Novembro 1940. Artigo assinado por Luís Heitor. FUNDAÇÃO BILIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
91
a importância do trabalho do grupo frente à “realidade em transformação”, Koellreutter denuncia a estagnação do meio artístico e do ensino de música no Brasil.10 Esse segundo momento ideológico é caracterizado pela substituição do conceito corrente de “indivíduo” − nos assuntos musicais elevado à categoria mítica e idealista −, pelo contemporâneo e recém-introduzido valor: “capacidade coletiva de uma geração”. MOMENTO III
O segundo documento significativo produzido pelo Música Viva é o Manifesto 1946 ou Declaração de Princípios, levando os nomes de Egydio de Castro e Silva, Gení Marcondes, Heitor Alimonda, Santino Parpinelli, Eunice Katunda, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, Koellreutter. Uma simples leitura deste documento, que se tornará referência oficial do movimento, torna evidente o grau de complexidade com que é tratado o fato musical, mediante os enfoques estético, social e econômico, refletindo, antes de uma coerência propriamente, um mosaico de flashes intensos de consciência. Reproduzimos a seguir alguns fragmentos: A música, traduzindo idéias e sentimentos na linguagem dos sons, é um meio de expressão; portanto, produto da vida social. /.../ A arte musical é o reflexo do essencial na realidade. A produção intelectual, servindo-se dos meios de expressão artística, é função da produção material e sujeita, portanto, como esta, a uma constante transformação, a lei da evolução. Música é movimento. / Música é vida. “MÚSICA VIVA” compreendendo este fato combate pela música que revela o eternamente novo, isto é: por uma arte musical que seja a expressão real da época e da sociedade. “MÚSICA VIVA” refuta a assim chamada arte acadêmica, negação da própria arte. “MÚSICA VIVA”, baseada nesse princípio fundamental, apoia tudo o que favorece o nascimento e crescimento do novo, escolhendo a revolução e repelindo a reação. “MÚSICA VIVA”, compreendendo que o artista é produto do meio e que a arte só pode florescer quando as forças produtivas tiverem atingido um certo nível de desenvolvimento, apoiará qualquer iniciativa em prol de uma educação não
92
somente artística, como também ideológica; pois, não há arte sem ideologia. /.../ “MÚSICA VIVA”, adotando os princípios de arte-acão, abandona como ideal a preocupação exclusiva de beleza; pois, toda a arte de nossa época não organizada diretamente sobre o princípio da utilidade será desligada do real. /.../ “MÚSICA VIVA” acredita na função socializadora da música que é a de unir os homens, humanizando-os e universalizando-os. “MÚSICA VIVA”, compreendendo a importância social e artística da música popular, apoiará qualquer iniciativa no sentido de desenvolver e estimular a criação e divulgação da boa música popular, combatendo a produção de obras prejudiciais à educação artístico-social do povo. /.../ Consciente da missão da arte contemporânea em face da sociedade humana, o grupo “MÚSICA VIVA”, acompanha o presente no seu caminho de descoberta e de conquista, lutando pelas idéias novas de um mundo novo, crendo na força criadora do espírito humano e na arte do futuro.11 Este grande painel de idéias, verdadeiro mural de intenções da modernidade musical brasileira, retrata com perfeição o papel revolucionário assumido pelo movimento e o engajamento visceral com que os membros do grupo se lançam às questões fundamentais da realidade social de seu tempo. No entanto, contém já em seu bojo as contradições essenciais que provocarão abalos consecutivos até sua ruptura definitiva. Santoro, que desde Agosto de 1947 estava fora do país, participa do “II Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais”, realizado em Praga de 20 a 29 de Maio de 1948. O contato direto com os músicos progressistas e suas teses o levarão a compartilhar fervorosamente dos ideais do “realismo socialista”. Serão justamente as “Resoluções” e o “Apelo” elaborados nesse congresso – e editados em seguida no Música Viva nº16 (Agosto/1948), boletim que encerra a série de publicações –, que conferirão substrato formal para a polarização das divergências ideológicas entre Koellreutter e Santoro, notadamente, deflagrando no grupo o processo efetivo de dissolvência. Assim, se por um lado o movimento Música Viva
“MÚSICA VIVA” acredita na função socializadora da música que é a de unir os homens, humanizando-os e universalizando-os. demonstrava amplo desenvolvimento em sua empresa de divulgação e de formação musical, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, por outro lado o grupo integrado pelos compositores − até então seu carrochefe −, rumava a caminho da implosão. O MOVIMENTO EM SÃO PAULO
A inauguração do movimento Música Viva paulista se dá em meados de 1944, como mencionamos. O primeiro grupo que se constituiu foi a célula base de um tímido movimento, sediado na residência de um de seus participantes onde ocorriam aulas, apresentações musicais e palestras de Koellreutter. Afora seus alunos Gení Marcondes, Ruy Coelho, Álvaro Bittencourt, Ducks Simon, Ulla Simon-Wolf, Eva Kovach, Lídia Alimonda, Jenny Pereira e Magdalena Nicoll, integravam também o grupo vários outros artistas e intelectuais. Após breve interrupção, Koellreutter retomará no ano seguinte suas aulas. Nininha Gregori, Damiano Cozzella, Roberto Schnorrenberg, Hans Trostli, Jorge Wilheim e Eunice Katunda12, são alguns dos alunosparticipantes que darão vigor a essa segunda e mais autêntica fase do movimento. Música Viva paulista é lançado oficialmente no auditório da Biblioteca Municipal em 05/07/1947, sendo o evento ilustrado com a conferência “Fundamentos de uma estética materialista da música”, pronunciada pelo líder do Música Viva e seguida, como de praxe, por debate público. Desde esta data tem início uma profícua atuação junto ao Museu de Arte de São Paulo, mediante a realização de série de cursos, conferências e dos “Concertos Música Viva”, que prolongaram-se até 1951.
No entanto, apesar da dinâmica que o movimento paulista imprimiu no meio musical local, suas atividades não chegaram a alcançar a mesma magnitude verificada no Rio de Janeiro. Tampouco emergiu de seus participantes um grupo autêntico de compositores, do porte de um Santoro ou Guerra Peixe (Roberto Schnorrenberg é uma das poucas exceções), fato que em parte justifica a importância minimizada que a ele correntemente se atribui. O grupo que se formou foi composto em grande parte por musicistas, muitos dos quais jovens alunos de Koellreutter desejosos em redinamizar o ambiente da época e bastante atuantes na promoção de conferências, cursos, audições e concertos. Contudo, os núcleos paulistas de renovação, que vieram posteriormente a desempenhar um relevante papel no desenvolvimento da música brasileira desde o início da década de 60, permitem observar na base de suas iniciativas, músicos ativos formados num terreno já fertilizado pelas realizações Música Viva, seja enquanto participantes diretos do movimento, seja enquanto alunos de Koellreutter (de suas aulas particulares de composição e estética, bem como das classes por ele ministradas na “Escola Livre de Música” de São Paulo).13 TRANSCENDÊNCIA DO MOVIMENTO
Em 7 de Novembro de 1950 o compositor Camargo Guarnieri, natural de Tietê/SP, publica sua “Carta Aberta”, responsável por uma das maiores polêmicas já observadas na vida musical e artística brasileira. Texto de combate, com conteúdo fortemente polêmico, acabou por representar um golpe direto no trabalho de formação musical desenvolvido por Koellreutter, 93
impondo sérias limitações à atuação do movimento na capital paulista.14 Envolveram-se na celeuma as facções pró e contra a música dodecafônica, reavivando questões políticas e estéticas já colocadas anos antes pertinentemente pelo próprio grupo Música Viva. Como desdobramento final desse processo, deu-se um mês após no Museu de Arte um efervescente debate, que levou à desarticulação o movimento em São Paulo e após no Rio de Janeiro. Os eventos musicais até então ali desenvolvidos com sucesso reduzem-se de maneira expressiva, deixando de ter qualquer relação com o movimento logo no ano seguinte. Assim como a divulgação dos manifestos de 1944 e de 1946 havia provocado fortes reações na comunidade musical, a concepção destes documentos implicou em rupturas internas no grupo de compositores. Muito embora o progressivo engajamento partidário de alguns de seus membros acrescido de dificuldades relacionais internas tenham comprometido uma continuidade coerente e harmoniosa dos princípios do movimento, deve-se no entanto mais substancialmente à questão política e de preservação de territórios em São Paulo o esvaziamento do Música Viva brasileiro. Os produtos engendrados pelos movimentos paulista e carioca rarefazem-se entre 51 e 52, praticamente nenhuma menção à Música Viva subsistindo após estas respectivas datas. Da mesma maneira que os movimentos, o grupo de compositores, a partir de sua re-orientação estética e ideológica em 1948-49, não chegou na realidade a ter um final estanque. Deu-se sim uma desarticulação, uma
dissolvência intensa e progressiva, em razão da falta interna de consenso. No entanto, o impulso dinâmico de reformular, de pôr abaixo valores acadêmicos e tradicionais, de combater preconceitos, de estimular a criatividade e a participação se mantém vivo no líder do Música Viva. De fato já antes do encerramento completo dos movimentos, Koellreutter implanta novos projetos que mesmo conferindo à ideologia Música Viva formas diferenciadas, privilegiam sempre, de maneira característica, a educação musical, a criação e o “sentido coletivista da música”. Assim, entre algumas de suas iniciativas, teremos a bem sucedida série dos “Cursos Internacionais de Férias Pró-Arte” de Teresópolis/RJ, que inaugurou a tradição dos eventos de férias no Brasil, com início em janeiro de 1950 (portanto quase um ano antes da Carta Aberta); a “Escola Livre de Música” de São Paulo, a partir de 1952, apresentando um projeto de formação musical inusitado e introduzindo nas salas de aula o estudo do jazz e da música popular, por exemplo; os “Seminários Internacionais de Música” de Salvador/Bahia, lançados em 1954, e que, logo nos anos seguintes, acabou por transformar a capital baiana num dos mais importantes e inovadores centros de formação de músicos e de educadores musicais do país.15 Grande parte dos músicos de relevo no cenário artístico brasileiro, bem como dos grupos corais e/ou instrumentais, espelham em sua formação uma simples influência que seja ou, mais freqüentemente, uma filiação direta com a dinâmica empresa pedagógica instalada pioneiramente pelo movimento Música Viva e por H. J. Koellreutter entre nós.
1. Hans-Joachim Koellreutter nasceu em Freiburg, na Alemanha, a 02/09/1915 e chegou ao Rio de Janeiro em 1937. Com 22 anos, o jovem flautista e compositor, que havia estudado com o renomado regente Hermann Scherchen, mestre de toda uma geração, traz vivo o desejo de dar continuidade no Brasil às participações que havia tido na Europa em grupos com certo ineditismo de propostas (“Círculo de Música Nova”, Berlim 1935 e “Círculo de Música Contemporânea”, Genebra 1936).
inaugurando um movimento musical e nomeando assim um periódico musical, editado em Bruxelas de 1933 a 1936. Os esforços desse reconhecido mestre foram consagrados à divulgação e à melhor compreensão da música nova, cabendolhe as primeiras audições de obras de compositores modernos, hoje indiscutivelmente incorporados à história do século XX: P.Hindemith, A.Schoenberg, A.Berg, A.Webern, S.Prokofiev, I.Stravinsky, L.Dallapiccola, L.Nono, H.-W.Henze, bem como Koellreutter, Guerra Peixe, Eunice Katunda, entre outros mais.
2. A expressão Musica Viva foi originalmente cunhada pelo músico e regente alemão Hermann Scherchen (1891-1966),
94
3. Diferentemente das seguintes fases nas quais os participantes
mais ativos serão jovens alunos ou ex-alunos de Koellreutter.
DISCOGRAFIA
4. A primeira fase de publicação dos boletins estende-se do nº1 de Maio/1940 ao nº 10/11 de Maio/1941. Cada um dos exemplares dessa fase oferecem em suplemento a partitura de uma composição contemporânea, de pequeno porte, quase sempre de autor nacional. A retomada das publicações se dará apenas em 1946, porém em outro formato e com nova política editorial.
KOELLREUTTER PLURAL - Centro Experimental de Música do SESC
5. Por essa ocasião são membros do Música Viva no Rio de Janeiro: Jaioleno dos Santos, Marcos Nissensson, Santino Parpinelli e Loris Pinheiro, afora os signatários do manifesto. 6. Eram irradiados semanalmente programas com música ao vivo e gravações, contando com a participação de membros do Música Viva e de artistas convidados, intérpretes que, em sua maioria, desde então impuseram-se no ambiente musical. De fato, não apenas a modernidade mas várias outras épocas foram representadas e comentadas nos programas. As estréias mundiais, nacionais ou regionais cobriram então vasta gama, incidindo sobre produções ocidentais desde a Idade Média até a contemporaneidade e, evidentemente, obras do próprio grupo. Esses programas estenderam-se até cerca de 1952. 7. Aluno de Koellreutter a partir de 1940 e até por volta de meados de 41, Santoro já havia efetuado em diversas obras a passagem do atonalismo simples ao dodecafônico, encontrandose nessa ocasião em plena maturidade composicional. 8. Seu colega desde inícios de 1944, este músico experiente passa rapidamente a conceber seus mais significativos frutos nessa mesma direção. 9. Vale observar que raras foram as músicas compostas rigorosamente sob o método atonal-dodecafônico, tal como concebido por A.Schoenberg, praticado por seus discípulos A. Berg, A. Webern e muitos dos principais seguidores, mesmo um latinoamericano como Juan Carlos Paz. As produções dos compositores brasileiros foram em sua quase totalidade bem mais livres do ponto de vista técnico e particularmente criativas na incorporação de ritmos e padrões musicais regionais brasileiros, resultando assim em fatura fortemente original. 10. Em seu texto “A música e o sentido coletivista do compositor moderno” (Diretrizes, 11/05/44, p.5) ele critica as deficiências do curso de composição da Escola Nacional de Música (RJ), gerando
(SP,1995) (CD); “Koellreutter”, série Música Nova da América Latina - TACAPE (T0012,1983); “III Bienal de Música Contemporânea”, Vol.II. FUNARTE, LP nº 3.56.404.031; “Beatriz Balzi – Compositores Latino-Americanos 1, 2, 3”, série Música Nova de América Latina – TACAPE (CD), entre vários outros editados, sobretudo, pela FUNARTE (RJ)
profunda incompatibilização não apenas com a própria escola, mas com todo o meio musical conservador carioca. 11. Cf. boletim Música Viva, nº12, Jan./1947. Este documento, finalizado em 1 de Novembro 1946, foi também publicado, sob o título “Manifesto Música Viva / Declaração de Princípios”, na revista Paralelos, nº5 (SP, Jun./1947), p.49-51. Para sua transcrição integral, bem como a dos demais manifestos (1944 e 1945), ver: KATER, C. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à modernidade (2001). 12. Que em seguida irá integrar o grupo de compositores no Rio de Janeiro junto com Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Edino Krieger. 13. Fundada em 15 de Março de 1952, a “Escola Livre de Música de São Paulo Pró-Arte” passará a chamar-se, quatro anos após, “Pró-Arte Seminários de Música” e estende suas atividades até 1958. 14. Este documento foi muito provavelmente originado pelo forte incômodo causado no compositor nacionalista diante do progressivo espaço que vinha sendo ocupado em São Paulo pelo movimento Música Viva, sob a coordenação do carismático Koellreutter, de quem aliás tinha sido amigo havia quase uma década. 15. A partir desses Seminários é que se originou a Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Para uma apresentação das principais realizações e atividades de Koellreutter, ver: KATER, C. “H. J. Koellreutter: música e educação em movimento”, in: Cadernos de Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH: Atravez/EM-UFMG/FEA, Fev/1997, p.6-25.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KATER, Carlos. Catálogo de Obras de H. J. Koellreutter. Belo Horizonte: FEA / FAPEMIG − Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, 1997.
———. (Edit.) Cadernos de Estudo:Educação Musical, nº 6. SP/BH: Atravez/UFMG, Fev. 1997 (contendo coletânea comentada de textos produzidos por H.J.Koellreutter em diferentes épocas).
———. Música Viva e Koellreutter, movimentos em direção à modernidade. São Paulo: Atravez & Musa, 2001.
NEVES, José Maria. Música Contemporânea Brasileira. SP: Ricordi, 1981.
———. Eunice Katunda, musicista brasileira. São Paulo: Annablume/ FAPESP, 2001.
MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000 (5ªed.).
CARLOS KATER Doutor em História da Música e Musicologia pela Universidade de Paris IV (Sorbonne) e Professor Titular concursado pela UFMG, é atualmente docente da UFSCar - Universidade Federal de São Carlos e do Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade São Marcos (SP).
95
Francisco Mignone FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Lorenzo Fernandez FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
LUTERO RODRIGUES
N
ão tivessem nascido no mesmo ano, 1897, Francisco Mignone e Oscar Lorenzo Fernandez não estariam freqüentemente associados, mesmo levando em conta as várias similaridades entre suas características e vivências pessoais, compreendendo desde a comum escolha de suas profissões, a atuação no mesmo espaço físico-cultural, até a adesão, na condição de compositores, a propostas estéticas semelhantes. Porém, se olharmos de forma mais acurada, veremos que suas trajetórias foram desiguais, o que reputamos a três razões fundamentais: suas origens, as diferentes personalidades e a fatalidade que interrompeu de maneira prematura a vida de Lorenzo Fernandez, estabelecendo uma grande distinção entre os períodos de tempo que ambos dispuseram para atuar e produzir. Francisco Mignone nasceu em São Paulo, no dia 3 de setembro de 1897, filho do jovem músico italiano Alferio Mignone, flautista que havia emigrado para o Brasil no ano anterior. A provinciana São Paulo não oferecia muitas oportunidades de trabalho a um instrumentista de orquestra, entidade musical até então inexistente na cidade, a não ser na forma de agrupamentos musicais heterogêneos arregimentados ocasionalmente. Entretanto, a cidade crescia e desenvolvia-se rapidamente: em 1906, começaram as atividades do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, do qual Alferio Mignone tornou-se professor; em 1911, inaugurou-se o Teatro Municipal de São Paulo e no ano seguinte, foi criada a Sociedade de Cultura Artística; finalmente, em 1921, foi fundada a Sociedade de Concertos Sinfônicos de São Paulo, entidade que congregou uma orquestra com quadro regular de instrumentistas, entre eles Alferio Mignone. Ser filho de um músico italiano – profissão mal vista na época – vivendo fora do grande centro dos acontecimentos e das principais instituições musicais do país, o Rio de Janeiro, era uma origem desfavorável, a não ser para quem estava também
98
destinado a ser músico. Desde muito cedo, Francisco Mignone recebeu uma esmerada formação musical estudando flauta e piano; aos 15 anos, ingressou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo onde passou a ser orientado pelos melhores professores que havia na cidade: seu próprio pai (flauta) e o célebre mestre italiano Agostino Cantú (piano, harmonia, contraponto e composição). Aos 19 anos, recebeu os diplomas de flauta, composição e piano, três vertentes que lhe foram úteis em diferentes momentos da vida. Quando terminou o Conservatório, o jovem Mignone já era conhecido no ambiente musical paulista. Desde os 13 anos de idade, tocava piano em pequenas orquestras para ajudar nas despesas com seus próprios estudos e eventualmente atuava também como flautista, não só em orquestras, mas também em conjuntos de “chorinhos” pelas ruas de São Paulo. Começava também a revelar o seu talento para a composição criando peças de cunho popular, com o pseudônimo de “Chico Bororó”. Para o público erudito paulistano, a estréia oficial de Mignone deu-se em 16 de dezembro de 1918 e foi um grande sucesso. Ele atuou como pianista, solando o 1º movimento do Concerto de Grieg, e compositor, pois duas de suas obras sinfônicas foram também ouvidas em primeira audição: o poema sinfônico Caramuru (1917) e a Suíte Campestre (1918). São Paulo tinha uma lei singular, o chamado Pensionato Artístico do Governo do Estado, que concedia bolsas de estudo no exterior para jovens artistas, desde que seus nomes fossem aprovados por uma comissão presidida pelo então deputado Freitas Valle, um admirador do talento de Mignone. Após o sucesso do concerto, a obtenção da bolsa por Mignone foi uma conseqüência natural, como também foi natural o seu destino, a Itália. Além da facilidade da língua e sua própria origem, a cultura musical italiana dominava a vida musical paulistana, onde atuavam muitos músicos originários daquele país,
embora a influência francesa preponderasse em todos os outros ramos culturais, como de resto acontecia em todo o Brasil. Não resistindo à digressão, qual não teria sido o impulso inicial na carreira do jovem compositor e seu destino após diplomar-se, se tivesse mostrado suas qualidades excepcionais de músico, cursando, não o conservatório paulistano, mas o Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, de muito maior visibilidade? Em 1920, Mignone chegou a Milão e só retornaria ao Brasil, definitivamente, em 1929. Durante este período, voltou ao nosso país algumas vezes, por curtas temporadas, geralmente para acompanhar a execução de algumas de suas principais composições da década. Na Itália, estudou harmonia, contraponto, fuga e composição com o célebre mestre Vincenzo Ferroni, que tivera formação francesa como discípulo de Massenet. Seu nome estava ligado à história da música brasileira, pois havia sido colega de Francisco Braga e professor de Alexandre Levy. Mignone solidificou e ampliou seus conhecimentos, inclusive em orquestração, arte para a qual já demonstrava especial aptidão. Em São Paulo, a orquestra da Sociedade de Concertos Sinfônicos que se responsabilizava pela execução de suas novas obras, também promovia concursos de composição, duas vezes vencidos por Mignone, em 1923 e 1926. As principais obras do compositor, durante o período, foram duas óperas: O Contratador de Diamantes (1921) e L’innocente (1927), ambas com texto em italiano, na época considerado quase uma linguagem oficial da ópera. Uma dança sinfônica do Contratador, a conhecida Congada, obteve grande sucesso ao ser incluída na programação da Orquestra Filarmônica de Viena, sob a regência de Richard Strauss, em sua passagem pelo Brasil, em 1923, antecipando o sucesso que a ópera alcançaria no ano seguinte, ao ser estreada no Rio de Janeiro. Maior sucesso ainda obteria sua segunda ópera, L’innocente, em sua estréia, no Rio de Janeiro, em 1928, e algumas lideranças da vida cultural brasileira, em conjunto com setores da imprensa, passaram a vaticinar que Mignone seria o sucessor de Carlos
Francisco Mignone. Festa das Igrejas. Partitura manuscrita autógrafa. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Gomes. Entretanto, nem Carlos Gomes tinha uma reputação inatacável entre as diversas facções modernistas, nem Mignone, que começou a ver questionadas suas óperas italianas através dos mesmos setores da nossa intelectualidade. Um deles era um velho conhecido seu, Mário de Andrade, antigo colega do Conservatório, que escreveu: “Mas que valor nacional tem O inocente? Absolutamente nenhum. Em música italiana, Francisco Mignone será mais um, numa escola brilhante, rica, numerosa, que ele não aumenta. Aqui ele será um valor imprescindível.” (Mariz,1997:13) Porém, Mário não havia feito apenas este elegante apelo a Mignone; em outra ocasião, dirigindo-se aos compositores brasileiros em geral, dissera: “Todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente com valor humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma 99
reverendíssima besta”. (Andrade, s/d.:19) Voltando ao Brasil, em 1929, Mignone tomou a decisão que gerou profundas mudanças em sua música, aderindo ao nacionalismo. Muitos anos mais tarde, ao completar 70 anos, em uma entrevista bem humorada concedida ao Jornal do Brasil, o compositor afirmou que tomara a decisão para “não ser considerado…uma reverendíssima besta”. Sob a influência de Mário de Andrade, de quem tornou-se um grande amigo, Mignone compôs, a partir de 1929, a série das 4 Fantasias Brasileiras para Piano e Orquestra, de inequívoca tendência nacionalista. Em 1933, mudou-se para o Rio de Janeiro, cidade onde viveria até a morte e iniciou um ciclo de obras, sobretudo sinfônicas, baseadas em elementos característicos da cultura negra do Brasil: Maracatú do Chico Rei (1933), Babaloxá e Batucajé (1936), Leilão (1941). O chamado “ciclo negro” de sua música provocou questionamentos, inclusive de Mário de Andrade, fazendo com que o compositor buscasse outros rumos. Porém, estas não foram suas únicas obras do período; também compôs o célebre ciclo das 12 Valsas de Esquina (1938-1943), obras que nos remetem para a vivência seresteira do “Chico Bororó” nas ruas de São Paulo. De todos os compositores influenciados por Mário de Andrade, foi ele quem mais deixou transparecer, em sua música, os ideais socialistas da fase final da vida de Mário, através de obras como Sinfonia do Trabalho (1939) e Festa das Igrejas (1940). Crises eventuais de auto-questionamento faziam parte da personalidade de Mignone, tornando-se responsáveis por várias mudanças de rumo em sua vida. Em uma delas, a composição foi temporariamente preterida pela regência, atividade que seu múltiplo talento musical permitia exercer com perfeição, lembrando que desde 1934, Mignone assumira a cadeira de Regência do Instituto Nacional de Música e tivera a oportunidade de reger grandes orquestras da Europa, como a Filarmônica de Berlin. Em outro destes momentos de reflexão, exatamente quando completava seus 50 anos, deixou-nos um importante depoimento através do livro A parte do anjo, externando os conflitos consigo mesmo gerados por sua “facilidade natural” em relação à música.
100
A continuação de seu trabalho de compositor pode ser definida por suas próprias palavras: “Depois de dobrar o cabo das boas resoluções, aos sessenta e mais anos, entreguei-me a escrever música pela música. Agrado a mim mesmo e é quanto basta. Aceito e emprego todos os processos de composição conhecidos.” (Mariz,1997:46) Eventualmente, o compositor criou peças de linguagem mais moderna, mas a partir da década de 60, fez experiências com a técnica dodecafônica e a música atonal, voltando em seguida à sua linguagem anterior baseada no credo nacionalista. Apesar das crises ocasionais que dificultavam seu trabalho, a produção musical de Mignone pouco a pouco tornouse muito numerosa, abrangente e diversificada, compreendendo variados gêneros e as mais diversas formações instrumentais e vocais, desde a música para piano, canto e piano, música de câmara, até aquela destinada às grandes formações de coro e orquestra sinfônica. Sua produção tem algumas particularidades que o diferenciam no cenário brasileiro, entre elas o ecletismo: compôs mais de uma dezena de bailados, número equivalente de músicas para filmes cinematográficos, mas também dois oratórios e sete missas, fato surpreendente para um compositor que se declarava não-católico. Observando a obra de Mignone como um todo, pode-se perceber que ele preferia compor a partir de motivações exteriores, geralmente literárias, e seu instrumento preferido era a orquestra sinfônica, fato que o tornou, depois de Villa-Lobos, o compositor brasileiro que mais obras escreveu para esta formação instrumental. A ópera, excluída de sua vida por uma opção consciente, voltou a fazer parte dela já perto de seu final. Escolhendo assuntos ligados ao passado histórico brasileiro, compôs O Chalaça (1976) e O Sargento de Milícias (1978). Mignone morreu no dia 19 de fevereiro de 1986, aos 88 anos de idade, e concluímos da maneira que começa quase toda a bibliografia existente sobre Mignone, afirmando que foi ele o músico mais completo entre todos os nossos compositores. Também brasileiro de primeira geração, Oscar Lorenzo Fernandez nasceu no Rio de Janeiro, 2 meses
após Mignone, no dia 4 de novembro, filho de um comerciante espanhol de boa situação econômica, Don Cassiano Fernandez Alvarez. Desde cedo, sua família destinou-o à medicina e ele demonstrava aptidão pela pesquisa científica. Aos 15 anos, começou a tocar piano de ouvido, apresentando especial interesse por acordes e harmonizações, enquanto sua irmã Amália, que estudava piano com Henrique Oswald, passou a darlhe noções de teoria musical. Preparando-se para cursar a Faculdade Nacional de Medicina, em 1916, sofreu um distúrbio nervoso que o impediu de estudar por algum tempo, dedicando-se, porém, à música como forma de relaxamento. Tendo já feito algumas incursões pela composição de peças de cunho popular, passou a ter aulas regulares de piano e no ano seguinte, matriculou-se no Instituto Nacional de Música. A partir deste momento, a vida de Lorenzo Fernandez transformou-se em um dos maiores exemplos da história da música brasileira, senão o maior, de determinação e dedicação ao objetivo de tornar-se músico, tendo plena consciência que começara mais tarde do que a prática normal recomendava e portanto deveria fazê-lo com muito maior empenho pessoal. Tal dedicação foi muito bem recebida pelos competentes mestres do Instituto, com os quais passou a estudar: J. Octaviano (teoria a solfejo), Henrique Oswald (piano), Francisco Braga (composição, contraponto e fuga) e sobretudo Frederico Nascimento (harmonia), que tornar-se-á seu mentor e amigo. Em 1923, com o agravamento dos problemas de saúde do mestre Frederico Nascimento, Lorenzo Fernandez foi nomeado professor substituto da cadeira de Harmonia Superior, tornando-se o mais jovem membro do corpo docente da instituição, posto no qual foi efetivado, em 1925, após a morte do mestre. Além desta vertiginosa carreira acadêmica, desde 1919, Lorenzo Fernandez produzia, anualmente, várias composições para piano, canto e piano, e música de câmara, incluindo o Trio nº 1, que recebeu sua estréia em 1923, num concerto inteiramente dedicado às suas obras, no Instituto Nacional de Música. Até 1924, suas composições gravitavam em torno das soluções estéticas românticas e impressionistas,
Lorenzo Fernandez. Fotografia assinada por Nicolas. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
embora o compositor não se mantivesse avesso às novas propostas modernistas. Havia estado presente à Semana de Arte Moderna, de São Paulo, e passou a desenvolver, com Graça Aranha, um dos participantes da Semana, o projeto de composição de uma ópera baseada no texto de Malazarte, daquele autor, ao mesmo tempo em que iniciava uma amizade com Mário de Andrade que se tornaria sólida.1 A partir de 1924, Lorenzo Fernandez passou a evidenciar sua adesão ao nacionalismo musical brasileiro com a composição da Canção Sertaneja e do Trio nº 2, denominado Trio Brasileiro. No ano seguinte, produziu sua primeira obra orquestral, a Suíte Sinfônica sobre Três Temas Populares Brasileiros, revelando um interesse que seria sempre crescente pela arte da orquestração e pela música sinfônica. O poema sinfônico Imbapára (1928) já foi uma obra de maior fôlego e sua sucessora, Reisado do Pastoreio (1930), terminava com um Batuque que se tornaria célebre na década de 30. Após ser editado pela Ricordi italiana
101
102
COO PER AÇÃO
E
D E S E N V O LV I M E N TO
NA
AMAZÔNIA
DISCOGRAFIA
Música de Francisco Mignone 1 – ESTE BRASIL QUE EU AMO Intérprete: Eudóxia de Barros, pianista No fundo do meu quintal Editora Paulinas Comep – São Paulo CD 6673-7 2 – PIANO BRASILEIRO (2CDs) Intérprete: Francisco Mignone, pianista Lendas Sertanejas nº 6,7,8 Funarte – Fun 004-5M/95 3 – FRANCISCO MIGNONE – 17 CHOROS PARA PIANO Intérprete: Maria Josephina Mignone, pianista 17 Choros para Piano Funarte – ATR 32034 4 – PANORAMA DA MÚSICA BRASILEIRA PARA PIANO Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista Valsa Elegante / Lenda Sertaneja nº 8 Universidade Federal de Goiás ADD 99129 5 – FRANCISCO MIGNONE – UM CONCERTO E 19 CANÇÕES Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista Orquestra Sinfônica Nacional, regente: Alceo Bocchino Glória Queiroz, meio-soprano Francisco Mignone, pianista Concerto para Piano e Orquestra e 19 Canções Soarmec – Rádio MEC S003 6 – FRANCISCO MIGNONE Intérpretes: Maria Josephina Mignone, pianista Noel Devos, fagotista Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, regente: Francisco Mignone Fantasia Brasileira nº 3, para Piano e Orquestra/Leilão – Bailado/ Concertino para Fagote e Orquestra/Música nº 1, para Orquestra Funarte – ATR 32036
(1936), foi executado por grandes regentes e orquestras de vários países do mundo, sendo também gravado; acabou por tornar-se a obra de maior êxito de toda a carreira do compositor. Entretanto, Lorenzo Fernandez não via limites para suas atividades, assumindo cada vez mais tarefas. Desde a década de 20, atuava como crítico musical e colaborador de revistas especializadas em música, chegando a ter ainda maiores responsabilidades desta natureza, tais como a de redator e até fundador de periódicos do gênero. Tornou-se também auxiliar de Villa-Lobos nos projetos de educação musical implantados pelo governo Vargas, o que os aproximou ao ponto de tornarem-se grandes amigos. Porém, 102
o esforço sobre-humano de Lorenzo Fernandez foi aquele despendido na atividade pedagógica, acumulando atividades nas principais instituições de ensino musical do Rio de Janeiro da sua época: professor de harmonia, mais tarde também de contraponto e fuga da Escola (ex-Instituto) Nacional de Música (desde 1923), fundador e diretor do Conservatório Brasileiro de Música (desde 1936), professor e diretor interino (quando Villa-Lobos viajava) do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico (desde 1943). Interrompendo esta insana atividade por cerca de sete meses, em 1938, o compositor foi comissionado pelo governo brasileiro para representar o país no Festival Ibero-Americano de Música, na Colômbia, e aproveitando a ocasião realizou extensa tournée artística por sete países latino-americanos: Colômbia, Panamá, Cuba, Peru, Chile, Argentina e Uruguai. Nesta oportunidade, atuou como conferencista e regente, interpretando obras dos nossos maiores compositores e obtendo grande sucesso não apenas artístico como também pessoal, pois expressava-se perfeitamente em espanhol, a língua de seus pais. Durante a década de 30, Lorenzo Fernandez continuou a trabalhar na composição de sua ópera, Malazarte, e finalmente, em 1941, dirigiu sua estréia no Rio de Janeiro com grande sucesso. A ópera foi cantada em italiano, o que era comum nas décadas anteriores, como aconteceu com as óperas de Mignone, nos anos 20 – ambas, entretanto, compostas na Itália – mas curioso para os anos 40. Anos antes, já havia apresentado trechos da obra na forma de suíte sinfônica, inclusive em sua viagem latino-americana. Em relação ao conteúdo musical de suas obras, Luiz Heitor observou que: “Ao contrário de outros autores nossos que, bem ou mal, têm pago seu tributo às grandes formas musicais, escrevendo Sonatas, Sinfonias ou Concertos, Lorenzo Fernandez evitou-as, em sua obra, que tende francamente para a interpretação pictórica da sugestão musical, apondo títulos de intenção descritiva a quase todas as suas composições.” (Azevedo, 1950:307) Se esta afirmação era verdadeira para a produção inicial do compositor, já na década de 30 começaram
a surgir obras que iriam contrariá-la, pelo menos em parte, naquilo que se refere à ausência de grandes formas musicais, como os dois Concertos para Piano e Orquestra (de 1935 e 1936, respectivamente). Na década de 40, o compositor prosseguiu em sua nova tendência: Concerto para Violino e Orquestra (1941/42), Sinfonia nº1 (1945), Quarteto nº 2 (1946), Sinfonia nº 2 “O Caçador de Esmeraldas” (1946/47) e Sonata Breve, para Piano (1947). Tal como vários outros compositores da história da música ocidental, Lorenzo Fernandez esperou até sentir-se maduro o suficiente para lançar-se às grandes formas musicais. Entretanto, nem chegou a ouvir suas últimas obras, pois na manhã do dia 27 de agosto de 1948, tendo regido um concerto na noite anterior, foi encontrado morto em seu próprio leito, pouco antes de completar 51 anos de idade. A obra musical deixada por Lorenzo Fernandez não é numerosa como a de seus colegas contemporâneos que, no entanto, viveram muito mais que ele. É, sim, uma obra de qualidade, sobretudo a música sinfônica e as canções, de harmonia muito rica chegando a ser ousada, freqüente textura polifônica com elaborado tratamento temático e maestria na orquestração. A distribuição de suas poucas obras em numerosos e variados gêneros, formas e formações instrumentais e vocais, dá-nos a impressão de que elas correspondem ao objetivo e gradual cumprimento de etapas evolutivas metodicamente preestabelecidas, sob o comando de uma consciência superior. A avidez com que se dedicou à vida e suas atividades parece indicar que pressentia a brevidade de sua existência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M.de.Ensaio Sobre a Música Brasileira. São Paulo: Martins Editora, s/d. ANDRADE, M.de.Pequena História da Música. São Paulo: Martins Editora, 1981. AZEVEDO, L.H.C.Música e Músicos do Brasil. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil,1950. AZEVEDO, L.H.C.150 Anos de Música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,1956.
DISCOGRAFIA
Música de Lorenzo Fernandez 1 – PIANO BRASILEIRO (2CDs) Intérprete: Maria Romelita, pianista Triste Modinha/ Valsa Suburbana Funarte – Fun 004-5M/95 2 – PANORAMA DA MÚSICA BRASILEIRA PARA PIANO Intérprete: Belkiss Carneiro de Mendonça, pianista Valsa Suburbana/Três Estudos em Forma de Sonatina Universidade Federal de Goiás ADD 99129 3 – LORENZO FERNANDEZ vol.1 Intérpretes: Quinteto de Sopros da Rádio Mec Anna Cândida, pianista Quarteto de Cordas da Rádio MEC Lenir Siqueira, flautista/José Botelho, clarinetista/Angelo Pestana, fagotista Miguel Proença, pianista Margarida Martins Maia, soprano/Leonora Gondim, pianista Suíte para Quinteto de Sopros/Noturno para Piano/ Quarteto nº 1/Duas Invenções Seresteiras / Suíte Brasileira nº 3, para Piano/7 Canções Soarmec – Rádio MEC S 011 4 – LORENZO FERNANDEZ vol.2 Intérpretes: Orquestra Sinfônica Brasileira, regente: Alceo Bocchino Leonor de Macedo Costa, pianista Maria de Lourdes Cruz Lopes, soprano/Gerardo Parente, pianista Sinfonia nº 2 / Valsa Suburbana, Sonata Breve e Três Estudos em Forma de Sonatina, para Piano/7 Canções Soarmec – Rádio MEC S 012
1. Há controvérsias sobre a época em que Lorenzo Fernandez teria entrado em contato com Graça Aranha. Para Sérgio Nepomuceno Alvim Corrêa, teria ocorrido logo após a Semana de Arte Moderna. Para Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Vasco Mariz, isto teria acontecido mais tarde, em 1930.
CORRÊA, S. N. A. Lorenzo Fernandez Catálogo Geral.Rio de Janeiro: Rioarte,1992. KIEFER, B. História da Música Brasileira.Porto Alegre:Editora Movimento, 1982 KIEFER, B. Mignone Vida e Obra. Porto Alegre: Editora Movimento, 1983. MARIZ, V.Vida Musical. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. MARIZ, V. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000.
LUTERO RODRIGUES Regente e coordenador musical da Sinfonia Cultura − Orquestra da Rádio e TV Cultura de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Música.
103
Guerra Peixe compositor multifário ERNANI AGUIAR
É
difícil, principalmente para um ex-aluno, resumir uma vida de múltiplas e intensas atividades ligadas à cultura, como foi a vida do compositor César GuerraPeixe (1914-1993): compositor erudito, compositor popular, professor, pesquisador, arranjador, violinista, regente, articulista, produtor radiofônico com aproximações à pintura e à poesia. Iniciado por seu pai nas rodas de “choro” aos oito anos, aos dez já tocava violino pelas ruas de sua Petrópolis nos dias de carnaval em companhia de dois amigos. Daí por diante, afirmando-se a decisão de seguir a carreira musical, a presença da música popular é perene em toda a sua atividade musical, especialmente a da criação. E Guerra-Peixe começou a compor tão logo iniciou seus estudos na Escola de Música Santa Cecília de Petrópolis, sendo a primeira peça o Tango Nº 1 Otília, dedicado à sua primeira namorada seguindo-se uma série de danças, até mesmo não brasileiras que estavam na moda. A primeira composição de caráter erudito foi uma Abertura, escrita para a pequena orquestra da referida Escola de Música. Ocorreu então um incidente: o diretor da Escola e regente da orquestra recusou-se a experimentar a peça. Mas o presidente da sociedade mantenedora da entidade, Reynaldo Chaves, interveio energicamente e a obra foi executada. Sobre o fato, que marcou profundamente sua vida, escreveu Guerra-Peixe na sua relação de obras para canto, que organizou para servir à dissertação de mestrado do barítono Inácio de Nonno:
104
Reynaldo Chaves (violoncelista, industrial, teatrólogo e poeta) avô do compositor e regente Ernani Chaves (sic), foi o responsável por Guerra-Peixe haver se tornado compositor, animando-o insistentemente, após G.Peixe haver-se aborrecido com a composição em virtude de ciúmes demonstrados pelo diretor e professor (sic) da Escola de Música Santa Cecília, dos idos de mais ou menos 1930. Em 1931 foi estudar no Rio de Janeiro, onde se fixou definitivamente em 1934, freqüentando inicialmente aulas particulares com a grande mestra Paulina d’Ambrosio e ingressou no ano seguinte no Instituto Nacional de Música, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, seguindo os estudos regulares e se diplomando posteriormente. Na mesma Escola terminou sua carreira de professor universitário em 1990. A vivência de Guerra-Peixe na música popular continuou com suas atuações tocando em cafés, casas de chope e bailes, tocando também nos últimos cinemas-mudos. Porém intensos estudos de matérias teórico-musicais prosseguiram sob a orientação do renomado Mestre Newton Padua. 1938 foi um ano decisivo para suas idéias musicais, após a leitura do “Ensaio sobre a Música Brasileira” de Mário de Andrade, que até o fim de sua vida considerou seu Mestre, apesar de nunca ter tido a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente. Foi realmente a partir dessa leitura que Guerra-Peixe norteou sua busca a um caminho pessoal na música brasileira.
O curso de composição foi concluído em 1943, no Conservatório Brasileiro de Música, sempre com Pádua. Criou, nesse período um grande número de composições, desde experiências sinfônicas até pequenas peças para instrumento só, porém, extremamente crítico consigo, colocou-as num “index” de composições proibidas de serem tocadas, com poucas exceções. Mas compôs também música popular. A primeira peça que mereceu entrar no “Catálogo de Obras” (por ele chamado de “cata logo”), manuscrito precioso onde anotou todas as obras até a última, várias vezes expressando idéias, foi a Sonatina 1944 para flauta e clarinete. “Convertido” ao dodecafonismo, após seu encontro com Hans Joachin Koellreutter, com quem passou a estudar, seguiu esta linha estética durante seis anos (1944-1950), na verdade dividido em dois: o cada vez mais solicitado e dedicado arranjador e compositor de música popular e o compositor erudito, segundo ele próprio “sem a menor preocupação nacionalizante”. Integrando o Grupo Música Viva, dos seguidores de Koellreutter, onde teve como colegas os notáveis compositores Cláudio Santoro, Edino Krieger e Eunice Katunda, foi que suas obras ganharam projeção internacional e a admiração de personalidades como Juan Carlos Paz e Hermann Scherchen, que regeram obras suas respectivamente em Buenos Aires e Zurich. Mas as origens do compositor eram muito fortes e as “linhas cosmopolitas” começaram a fraquejar quando, Guerra-Peixe buscou um possível encontro entre dodecafonismo e música brasileira. As idéias de Mário de Andrade estavam vivas em seu pensamento, fazendo-o sentir a necessidade de uma saída para a música brasileira chamada erudita, até então baseada num discutível folclore. Também colocou-se o problema da comunicação da nova música com o público, tão descurado no Século XX. Tiveram início suas discussões com Mozart de Araújo que culminaram em sua primeira visita ao Recife em 1949 onde teve contacto com uma música viva, nacional, sem manipulação alguma. O resultado foi a ruptura com o dodecafonismo. Em seguida ocorreu uma coincidência: Scherchen passou pelo Rio
de Janeiro e convidou Guerra-Peixe para ir estudar com ele em Zurich, sendo seu hóspede e trabalhando na rádio local. Ao mesmo tempo recebeu também um convite de Recife para trabalhar também em rádio. Guerra preferiu o Recife e sempre disse que foi a melhor coisa que fez na vida. Foi um dos períodos mais férteis de sua vida quando, além de compositor erudito, seguindo novas linhas estéticas, e orquestrador, iniciou suas atividades de professor, articulista e a grande obra de pesquisador. Pesquisou Maracatu, Xangô, Catimbó, Côco, Pastoril, Zabumba (conjunto instrumental), Cabocolinhos, Reza-dedefunto, Frevo, Pregões, toques de vendedores ambulantes, manifestações culturais religiosas ou não, folguedos, atividades sociais, todas com músicas próprias, em dez cidades pernambucanas. Na época foram seus alunos: Clóvis Pereira, Jarbas Maciel, Guedes Peixoto, Lourenço da Fonseca Barbosa (“Capiba”) e Severino Dias de Oliveira (“Sivuca”). A permanência em Recife foi de três anos, quando novas obras importantes foram criadas e surgiu seu mais importante trabalho de pesquisa: o ensaio “Maracatus do Recife”, que décadas mais tarde serviu para salvar tal manifestação do desaparecimento. Imediatamente após o período recifense, seguiu-se outro maior e tão proveitoso quanto o nordestino: oito anos em S. Paulo, quando, com o apoio de Rossini Tavares de Lima, secretário da Comissão Paulista de Folclore iniciou naquele Estado outra grande pesquisa, incluindo Jongo, Tambú, Cateretê, Cururu, Dança Guerra-Peixe. de Santa Cruz, Dança de FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL São Gonçalo, Folia de Reis, – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO 105
Moçambique, Congada, Caiapós, Moda-de-viola e Samba-lenço em seis cidades paulistas, concluindo pelas semelhanças e contrastes entre o folclore pernambucano e o paulista. Em S. Paulo (1955) compôs as duas Suítes Sinfônicas Paulista nº 1 e Pernambucana nº 2. No fim da década de 50, seu catálogo de composições já estava bastante enriquecido com dois quartetos, duas suítes, uma sonata e uma sonatina para piano, música de câmara diversificada, o Pequeno Concerto para piano e grande parte do elenco de mais de trinta partituras para cinema. Continuava a compor música popular e já era detentor de numerosos prêmios. A fundação da nova capital e a instituição de um “Concurso Sinfonia Brasília”, levou-o à composição de uma obra de grandes proporções, notável pela forma e pela orquestração, capaz de empolgar qualquer platéia. Obra totalmente descritiva, inclui um trecho do discurso de Kubitschek na inauguração da Cidade. Esta obra e outras atividades concorreram para que Guerra-Peixe fosse, às vezes veladamente, às vezes explicitamente perseguido por alguns esbirros da ditadura militar (1964-1984).
DISCOGRAFIA
CD GUERRA PEIXE – MÚSICA POPULAR Orquestra de salão “Tira o dedo do pudim” – OSTDP9798 Produção independente CD SEBASTIÃO TAPAJÓS INTERPRETA RADAMÉS GNATTALI & GUERRA PEIXE Sebastião Tapajós, violão – Tapajós Produções - 1998 CD GUERRA-PEIXE – MUSICA DE CÂMARA Ricardo Amado, violino; David Chew, violoncelo; Ruth Serrão, piano; Pauxy Gentil, flauta; José Botelho, clarineta; Noel Devos, fagote; Inácio de Nonno, barítono; Rildo Hora, harmônica de boca. RioArte – RD 005 – 1996 – Rio de Janeiro CD A RETIRADA DA LAGUNA Orquestra Sinfônica Nacional – César Guerra-Peixe, regente Acervo FUNARTE de Música Brasileira CD TRIBUTO A GUERRA-PEIXE Incluindo: Tributo a Portinari e Sinfonia Nº 2 “Brasília” de C. Guerra-Peixe Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e Coral da OSPA – Ernani Aguiar, regente ACIT Comercial e Fonográfica – 1994
106
Com a criação da Sinfonia nº 2 Brasília, encerrou-se a segunda fase da obra composicional do Mestre. Se a primeira, segundo ele, foi a “dodecafônica” (1944-1950), a segunda foi a “nacionalista” (1950-1960). Entre a segunda e a terceira fase, que chamo de “síntese nacional” (1967-1993) (ou seria a inconsciência nacional preconizada por Mário de Andrade?) o compositor ficou seis anos sem criar nenhuma obra. Voltou para o Rio de Janeiro em 196l e, em 1963, voltou ao seu instrumento, o violino. Passou a tocar na Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC, onde permaneceu até a aposentadoria e na mesma Rádio criou programas de música brasileira. Continuou ainda mais atuante como arranjador para emissoras de televisão e foi professor nos Seminários de Música da Pró Arte e depois no Seminário de Música do Museu da Imagem e do Som (MIS). Pouco a pouco, essas aulas foram se transformando no seu Curso de Composição que se tornou um dos mais famosos do País. Passaram por suas aulas Antonio Guerreiro, Ayrton Barbosa, Felícia Wang, Guilherme Bauer, Haroldo Mauro Jr., Heitor Alimonda, Jards Macalé, Jorge Antunes, José Maria Neves, Maria Aparecida Ferreira, Marlene Fernandes, Nélio Rodrigues, Nestor de Holanda Cavalcanti, Rildo Hora, todos seguindo caminhos diversos. Eu fiz o curso completo entre 1969 e 1972. Já em plena maturidade, ampla experiência e total domínio da técnica composicional, iniciou a “terceira fase” com mais uma sonata e uma sonatina para piano, seguindo-se toda a obra para violão que inclui a primeira sonata brasileira para o instrumento, novas obras para canto e piano, as quatro composições para coro a capela, a segunda Sonata para violino, dezenas de obras diversas e, no elenco de obras sinfônicas, quatro importantes criações: Museu da Inconfidência, Retirada da Laguna, Assimilações e Tributo a Portinari, sua penúltima obra. Aos quarenta e sete anos foi eleito para a Academia Brasileira de Música, ocupando a cadeira nº 34, cujo Patrono é Araújo Vianna, sucedendo seu Mestre Newton Pádua. Quem o sucedeu foi seu colega e amigo Edino Krieger, atualmente (2004) ocupando a Presidência do Sodalício.
Participou, ainda que à distância, do famoso Movimento Armorial, liderado por seu amigo Ariano Suassuna, compondo para a Orquestra do Movimento seu celebrado Concertino para violino e pequena orquestra além do Duo Característico para violino e violão (“peça singelíssima”, segundo ele) e da peça, hoje obrigatória em todas as orquestras de cordas do País, Mourão, na versão do seu ex-aluno Clóvis Pereira. Em dezembro de 1983, recebeu um telefonema de Recife, informando que no carnaval do ano seguinte, daquela Cidade, voltaria a sair um Maracatu, reconstituído graças a seu livro “Maracatus do Recife”. O Mestre considerou seu melhor presente, antecipado, dos 70 anos e disse: “Já se viu? Eu, sem outro meio de comunicação, a não ser um livrinho de 171 páginas, a 2500 quilômetros do Recife, indo de raro em raro a essa Cidade, influir no seu carnaval? Chorei de emoção. Setuagenário, com uma vida agitadíssima, passou a pesquisar “Dança de Salão” e “Gafieira” e freqüentou (e dançou) assiduamente a “Estudantina” no Rio de Janeiro. Ainda foi professor na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, onde teve como alunos Alina Sidney, Francisco Gelape (prematuramente falecido), Harry Crowl, Lucas Raposo e Nelson Salomé. O cansaço da idade levou a que alguns amigos obtivessem sua transferência para a UFRJ. Existe ainda um elenco de musicistas seus amigos que, assim como ele, considerava Mário de Andrade seu Mestre. Entre eles Rogério Rossini, Ruth Serrão, Sonia Vieira e o compositor David Korenchendler. O Mestre aproximava-se dos oitenta anos, reconhecido, verdadeiro ícone vivo da música brasileira, “colecionando” merecidos prêmios e reconhecimentos públicos (foi o único músico a ganhar três vezes o “Golfinho de Ouro” do MIS), culminando com o primeiro Prêmio Nacional da Música, concedido pelo Ministério da Cultura
e escolhido por um júri formado por cinqüenta musicistas com esmagadora maioria de votos. O prêmio foi entregue a 15 de outubro de 1993, durante o concerto de abertura da X Bienal de Música Brasileira Contemporânea, perante uma platéia que lotou o Theatro Municipal do Rio de Janeiro e que o aclamou numa consagração... e despedida. Cercado pelo carinho de amigos e admiradores, mas especialmente de sua sobrinha-neta Jane GuerraPeixe e de seus alunos Antonio Guerreiro e Randolf Miguel, viveu seus últimos dias, falecendo ao cair da tarde de 26 de novembro na casa de sua ex-esposa Célia Guerra Peixe, deixando um imenso legado à música e à cultura brasileira. A figura humana do compositor foi singular. Polêmico, brigão, intempestivo, defensor de causas justas. Capaz de passar em segundos da raiva aterradora à gargalhada sonora, alegre, relaxada. Ao contrário de outros que preferiram toda a vida estar ao lado de poderosos, políticos e influentes, GuerraPeixe sempre preferiu o lado oposto, ainda que essa posição lhe trouxesse só prejuízos. Professor exigentíssimo, selecionador, incapaz de interferir nas preferências estéticas de cada aluno, respeitador das idéias dos jovens, incentivador. Quantos não tiveram suas aulas a preços reduzidos ou... grátis? Amigo leal de seus amigos, não se furtava em apoiá-los, auxiliá-los até mesmo pecuniariamente, o que lhe valeu uma série de ingratidões. Admirador das pessoas que o cercavam, não hesitou em escrever um hino para o colégio onde estudava o filho de uma empregada sua, simplesmente por verificar o esforço que a mãe fazia para educá-lo. Este foi César Guerra-Peixe, que se auto-definiu em uma entrevista ao ex-aluno Lucas Raposo: “Queira ou não, apesar do verniz artístico, eu sou mesmo é do povão. Não fora eu filho de um humilde ferrador.”
ERNANI AGUIAR Ex-aluno de César Guerra-Peixe. Compositor e Regente. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro da Academia Brasileira de Música.
107
Camargo Guarnieri
108
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
FLÁVIA CAMARGO TONI
C
amargo Guarnieri nasce em 1907, em Tietê (SP), primogênito de uma família pobre que faz música nas horas vagas. O casal Miguel e Gécia – flautista e pianista, respectivamente – terá mais oito filhos, sendo três homens: Belline, Rossine e Verdi. Camargo é o pequeno “Mozart” de Miguel que, ao perceber a grande vocação do filho, muda-se para a capital para proporcionar melhor formação musical para o menino que compõe desde cedo. Na cidade grande sua atenção maior é para o piano, até conhecer o maestro italiano Lamberto Baldi, em 1927, com quem trabalha composição e regência. Integrado a um ambiente onde circulam idéias sobre o compromisso dos artistas com uma arte que se queira brasileira e universal, busca uma nova roupagem para suas idéias musicais: decide não usar mais o nome Mozart, por extenso, presunçoso e anacrônico para um compositor do século XX, e adota o ano de 1928 para inaugurar seu catálogo de obras. O “passado musical” fica guardado em pastas, algumas peças apelidadas de “obra interdita” – título que aguça a curiosidade dos estudiosos – e passa a assinar “M. Camargo Guarnieri”.
Guarnieri tem pressa em fazer conhecer sua obra e escreve para piano e canto acompanhado, música de câmara e sinfônica, amadurece o projeto para uma ópera, e passa a ser ouvido nas salas de concertos de São Paulo e Rio de Janeiro. A vida profissional vai tomando corpo. Em meados da década de 30, compositor e regente ativo, vê sua produção acrescida de títulos para várias formações instrumentais, embora aguarde o momento para escrever uma Sinfonia. As obras para grande orquestra nascerão, de fato, na década seguinte o que faz supor que ele talvez almejasse uma segurança maior para escrevê-las, segurança conquistada após estudar, na França, com Charles Koechlin, o mestre que conhecia através da obra teórica bem como das composições. O nome não é escolhido ao acaso, pois o músico francês alimentava, como Guarnieri, grande afeição pela polifonia e contraponto elaborados. Para a regência, professor e aluno combinam que o melhor nome é o de François Rühlmann, à frente da Orquestra da Ópera de Paris durante aquele 1938. O breve tempo de permanência na Europa vale, 109
sobretudo, como vivência musical adquirida com a possibilidade de fazer executar sua música de câmara, além da oportunidade de escutar música nova regida por grandes nomes do momento. A Sonata para dois pianos e percussão, pelo casal Bela Bartok, Le Nouvel Âge, de Igor Markewitch, sob a batuta de Herman Scherchen, um concerto dirigido por A. Toscanini, outro, por Charles Münch, são memoráveis para o brasileiro que deve encurtar a viagem por causa da II Guerra. Regressa cheio de idéias e projetos musicais, encontrando, no entanto, um cenário profissional nada favorável, assim permanecendo até a experiência norte-americana. Mas a produção musical de Camargo Guarnieri – obra uniforme – não denota influência desta ou daquela nação onde viveu. Entre dezembro de 42 e maio de 43 Guarnieri visita os Estados Unidos a convite do Departamento de Estado e da União Pan-Americana e na oportunidade recebe pessoalmente o prêmio da Fleischer Music Collection para o Concerto nº 1 para violino e orquestra, Camargo Guarnieri. Trilha sonora do filme Rebelião em Vila Rica. Edições concurso da Free Musicais Ricordi Brasileira S/A. Library da Filadélfia. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Mas quem é Camargo Guarnieri, em 1942? Com a palavra, Aaron Copland, que conhecera a música do brasileiro, no ano anterior, no Rio de Janeiro: “Camargo Guarnieri, que agora está pelos trinta e cinco anos de idade, é na minha opinião o mais sensacional dos talentos ‘desconhecidos’ da América do Sul. Suas composições já bem numerosas deveriam ser muito mais conhecidas do que o são. Guarnieri é um compositor de verdade. Tem tudo o que é preciso – personalidade própria, uma técnica acabada e imaginação fecunda. Sua inspiração é mais ordenada que a de Villa-Lobos, mas não menos brasileira... O que mais me agrada na sua música é a sua expressão emotiva sadia – é uma exposição sincera do que um
110
homem sente... Sabe como modelar uma forma, como orquestrar bem, como tratar eficientemente o baixo. O que atrai na música de Guarnieri é o seu calor e a imaginação que vibra com uma sensibilidade profundamente brasileira. É, na sua expressão mais apurada, a música de um continente ‘novo’, cheia de sabor e de frescura.” A estada é muito proveitosa: a premiação de Guarnieri recebe boa cobertura da imprensa; ele tem a oportunidade de ver e ouvir novamente Toscanini à frente da NBC, regendo a Leningrado, de Shostakowich e um ciclo Brahms; através de Copland ele é apresentado a Sergei Koussevitzky, que o convida para reger a Abertura Concertante à frente da Sinfônica de Boston; a American League of Composers programa um recital de suas obras, no MoMA, e Leonard Bernstein está entre os pianistas da noite acompanhando o violoncelista Joseph Schuster na Sonata nº 1. Anos mais tarde Bernstein gravará a Dança brasileira regendo a Filarmônica de Nova York e ganhará a dedicatória da Sinfonia nº 4, “Brasília”, escrita em 1963. A estréia brasileira da Abertura concertante se dá no mesmo ano da composição, em 1942, com boa receptividade da crítica especializada. Dentre as manifestações destaca-se a do musicólogo Mário de Andrade, mentor artístico e amigo pessoal de Camargo Guarnieri, afirmando que pela primeira vez um autor encontrava a solução para o “allegro” brasileiro, ou seja, nas peças de movimento vivo, conseguia fugir às soluções coreográficas valendo-se de ritmos de danças populares. Assim, o crítico introduz um dos temas mais discutidos naquele momento, ou seja, o dos excessos das soluções exóticas nas composições de certos autores que se valiam, sobretudo, do uso de melodias folclóricas – temas com grande incidência de síncopas que restringiam o próprio trabalho de desenvolvimento das obras – além de percussão popular acrescentada à orquestra tradicional. No catálogo do autor há uma outra abertura para orquestra, a Festiva, e sete sinfonias, compostas entre 1944 e 1985. Camargo Guarnieri já pode ser considerado um compositor maduro quando coloca no papel o material da sua Sinfonia número 1. No início de
1940 decidira que no allegro final evitaria o “caráter coreográfico” construindo uma melodia característica, “sem as síncopas sistematizadas”, como confessa a um amigo. Assim, três anos depois, quando em Nova York, a invenção chega fácil e ele deixa pronto o “Radioso” enquanto soluciona questões relativas ao desenvolvimento do primeiro movimento. Uma vez no Brasil, é possível que todo o esboço da Sinfonia pronta tenha passado por certa reestruturação tendo em vista a adequação do trabalho para as normas do Concurso Luís Roberto Penteado de Rezende. Para homenagear a memória do jovem compositor, o regulamento do Concurso determinava que o trabalho vencedor deveria ser eivado de motivos característicos nacionais. De fato, a obra foi premiada em 1944 dedicada a Sergei Koussevitzky, regente da Boston Symphony Orchestra. A Sinfonia nº 2, a Uirapuru nasce em 1945, em trajetória de sucesso, pois, no ano seguinte, antes de sua estréia, obtém o segundo lugar (Prêmio Reichold) no Concurso Sinfonia das Américas, promovido pela Orquestra de Detroit (EUA). Dedicada a Heitor VillaLobos, foi apelidada de “Uirapuru”, nome do pássaro amazônico tão caro a ele que até compusera um poema sinfônico (1917) e uma peça coral (1944) com o mesmo título. Ao compositor carioca, tempos depois Guarnieri fará outra dedicatória, mais explícita, com a Homenagem a Villa-Lobos (1966), para sopros e percussão. Quando o maestro paulista anuncia que está escrevendo a Sinfonia nº 3, em 1952, há certa expectativa por parte do meio musical. Alguns meses antes ele redigira e fizera publicar uma “Carta aberta aos músicos e críticos do Brasil”, quase um manifesto político contra as ingerências estéticas externas, vale dizer, contra o emprego dos princípios do dodecafonismo. Alunos de composição, leitores, ouvintes e jornalistas manifestaram-se, a favor ou contra, gerando a polêmica musical mais criativa que o Brasil jamais teve. Camargo Guarnieri instigou. Fez com que se falasse e se fizesse música. Assim, a sinfonia – não por acaso dedicada a Lamberto Baldi, o professor que acompanhou os primeiros passos do compositor em vias de amadurecer – deveria apontar para os rumos a se encaminhar uma escola de
composição brasileira e contemporânea. Também não deve ter sido por acaso a escolha do primeiro tema, Teiru, canto dos índios Parecis, do Mato Grosso, celebrando a morte acidental de um cacique da tribo. A melodia, encontrada no relato de viagem do pesquisador Roquete Pinto, permeia toda a obra e dá origem a todos os motivos usados à exceção de um, o segundo tema do primeiro movimento, inspirado no canto de um pássaro da região onde nasceu o compositor. A Sinfonia nº 3 obteve o primeiro lugar no Concurso IV Centenário da Cidade de S. Paulo, em 1954. A quarta sinfonia de Camargo Guarnieri, como a de número 1, tem, como pano de fundo, duas cidades, São Paulo e Nova York, e dois concursos, num espaço cronológico de 20 anos. Na cidade norte-americana, como foi visto, ele inicia a primeira, em 1943, e conclui a quarta, em 1963. Muita coisa mudara na vida do músico. Na casa dos 50 anos de idade Camargo Guarnieri ocupa postos administrativos importantes e tem Camargo Guarnieri. Prêmio Shell para a música brasileira. 1984. muita disposição para FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – o trabalho. DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Personalidade de relevo, desde 1956 era assessor artístico musical do Ministério da Educação e em 1959 recebe a Medalha Valor Cívico do Governo do Estado de São Paulo. Motivada pela divulgação do Concurso “Sinfonia Brasília” – instituído para celebrar a fundação da nova Capital do país – a Sinfonia número 4 será elaborada ao longo de vários meses, dividindo a atenção do músico com a Direção do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e as composições do Concertino para piano, o Choro para violoncelo e o terceiro Quarteto para cordas. Guarnieri viaja bastante representando o país em Concursos e Encontros Internacionais de Composição. Assim, no final de 1961 só conseguira concluir o primeiro movimento da Sinfonia e começar o 111
movimento seguinte. Em março de 1963 a número quatro será colocada na bagagem que o acompanha aos Estados Unidos onde pretende dividir o tempo entre as atividades do Concurso “Mitropoulos”, os últimos retoques da partitura e o projeto para uma cantata. A sinfonia, aliás, será dedicada ao Presidente do júri, Leonard Bernstein. A partir de 1959, ano em que iniciava a sua Sinfonia nº 4, o compositor começa a pensar num efeito musical que só será empregado muitos anos depois, usando “canto no centro do 2º movimento e coro no final, cantando a mesma melodia do centro”, como relatou ao amigo e ex-professor Lamberto Baldi. Apesar de ser um voraz consumidor de poesia, o projeto foi postergado por não ter encontrado texto apropriado para o efeito pretendido. Aliás, a família Guarnieri era muito afeita à Literatura e o compositor, além de ter escrito sobre versos dos principais autores brasileiros de todos os tempos, já fizera parcerias com Alice e Rossine, dois de seus oito irmãos. Assim, após longo período sem dedicar-se a obras de proporções tão grandes, em 1977 – ano de seu 70º aniversário – aceita a encomenda da Secretaria de Cultura do Estado de S. Paulo para escrever a quinta sinfonia de sua carreira encomendando um texto para Rossine. Rio teimoso, poema cantado no terceiro movimento da Sinfonia nº 5 homenageia ao mesmo tempo o estado de São Paulo e a cidade de Tietê, onde Camargo Guarnieri nasceu. Tietê também dá nome ao rio que os indígenas chamavam de Anhembi, um rio “teimoso” porque não corre para o mar e deságua no Paraná facilitando a comunicação entre os dois estados vizinhos: “Tiê…/Tiê…/Ti – e – tê. //Bravo Anhembi,/ rio de pássaros,/que nasce na serra/e foge do mar/ para voltar ao coração da terra.//Volteia!/Volteia!/Arco da aliança/desenhado no chão do Brasil!/semente da União,/caminho da Paz…” Nova encomenda leva o compositor a compor a Sinfonia nº 6, desta vez para comemorar o aniversário de 70 anos do Teatro Municipal de São Paulo e dedicada ao músico português Filipe de Souza. Escrita entre 31 de janeiro e 17 de março de 1981, nela o autor desenvolve uma nova maneira de estruturar o primeiro movimento, adotando um único motivo melódico
112
configurado de duas formas distintas. Só na Sinfonia nº 7, de 1985, o autor se valeria de apenas dois movimentos em obra densa e bastante curta, se comparada às primeiras peças sinfônicas. No final de sua vida, o compositor que celebrara sua terra agora escreve obra intimista, encomendada por um amigo e a ele dedicada. Camargo Guarnieri faleceu em 1993 e teve longa vida produtiva. Em suas obras visitou todas as formas consagradas, da fuga ao ballet, passando pelo prelúdio, variação, sonata, concerto e prelúdio; da canção à ópera, passando pelo madrigal, cantata e missa. Seu catálogo, grande e variado, apresenta um perfil que acompanha as múltiplas atividades exercidas, bem como as preferências pessoais. Amante da literatura, escreveu canções para várias formações; regente de coro, no início da carreira, tem obras a capella; maestro de grupos sinfônicos, tem sinfonias e concertos para instrumentos solistas; bom pianista, tem obra vasta e cultuada para teclado; diretor artístico de um grupo de cordas, produziu atendendo às características desse grupo, também. De todos os títulos ainda há muito a se conhecer, obras que vêm confirmando sempre a fatura requintada de um autor que dominava com perfeição todos os meios da escrita musical. Mas, dentre os títulos inéditos, surpreende, particularmente, a fatura de seu vasto repertório de canções, fatura que já despertara o grande interesse de Mário de Andrade. Quando, no início da década de 1940, o musicólogo paulista escuta a gravação das 13 canções pela Discoteca Pública, tenciona escrever um ensaio e reúne notas e lembretes não logrando, contudo, concluí-lo. No esboço do trabalho que permanece inédito em seu arquivo o texto de Mário de Andrade traduz tão bem a destreza do compositor que faz valer a transcrição de um trecho: “[Guarnieri] nunca é descritivo, mesmo no sentido psicológico. É realmente um valor muito curioso. Em geral C.G. cria um movimento único, de função acompanhante, que se repete infindavelmente em cada compasso. É um valor de música pura, mas que não deixa, por isso, de ser ambientador do sentimento geral melódico da canção. A esse valor, de firme caráter rítmico-harmônico de acompanhamento, ele ajunta
elementos de estrito caráter musical, de música pura (o que não quer dizer inexpressivo, mas mais ambientador que descritivamente psicológico), linhas de polifonia livre, às vezes e não raro inspiradas no contracanto do violão acompanhante ou da flauta em variação dos choros. Ou elementos imitativos. Na estética da canção de C.G., essa forma de contribuição do piano é bem nítida, e a meu ver admirabilíssima, aproximando-o conceptivamente dos melhores representantes do Lied na sua maior expressão: Schumann e Brahms. O conceito da canção (canto solista acompanhado por instrumento solista) ao mesmo tempo que se mantém em toda a sua nitidez, alcança no entanto as mais elevadas e delicadas formas de música erudita, individualista, mas pura; individualismo a que repugna atribuir ao instrumento um valor romântico de descritor de paisagens e psicologias. O piano concertante da voz, em C.G. se mantém sempre dentro das ordens gerais da expressividade estritamente sonora. Difícil e tecnicamente muito pianístico, ele é sutilmente sempre acompanhante, sem ser exatamente subalterno. É um valor puramente musical que ambienta a melodia nascida expressivamente do texto, sem se incomodar com este. De forma que se o texto amoroso se refere a seios ou luares, o piano de Camargo Guarnieri jamais se esperdiçará em efeitos de sinos ou chatices de lunaridades descritivas, mas bordará com musicalidade exclusiva a linha cancioneira vertida do texto de amor.”1 Em Camargo Guarnieri impressiona, ainda, a liderança daquele que se mantém como o grande mestre brasileiro de composição, professor que preparou vários dos compositores atuantes hoje em dia. Personalidade reconhecida e respeitada no meio
DISCOGRAFIA
SINFONIAS 1 - 6 ABERTURA CONCERTANTE ABERTURA FESTIVA SUITE VILA RICA Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo Coro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo Regência: John Neschling. BIS CDs 1220/1290/1320 - Suécia CHÔRO PARA PIANO E ORQUESTRA SONATINA Nº 4 PARA PIANO Czech National Symphony Orchestra Regência: Paul Freeman Piano: Caio Pagano Hallmark Classics 350712 - Canadá VALSAS E SONATA PARA PIANO Belkiss Carneiro de Mendonça, piano PAULUS 000477 - Brasil CHÔRO PARA VIOLONCELO E ORQUESTRA Orquesta de las Américas Regência: Carlos Miguel Prieto Carlos Prieto, violoncelo. URTEXT JBCC023 - México 50 PONTEIOS PARA PIANO Laís de Sousa Brasil, piano. FUNARTE/EMI 532931-2 - Brasil CONCERTOS NOS 3, 4 E 5 PARA PIANO E ORQUESTRA Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo Regência: Camargo Guarnieri Laís de Sousa Brasil, piano
musical, M. Camargo Guarnieri foi homenageado e homenageou intérpretes, brasileiros ou não, tendo seu nome associado ao repertório de grandes artistas do século XX. 1. A Canção de Camargo Guarnieri, 2 fls. de papel jornal dobradas ao meio no sentido do comprimento, ms. lápis preto, 4 faces ocupadas, título grifado a lápis vermelho, In: Camargo Guarnieri: notas de pesquisa ms. lápis, 18 fls., vários formatos (Arquivo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo).
FLÁVIA CAMARGO TONI Musicóloga, é pesquisadora na área de Música do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e curadora do Arquivo Camargo Guarnieri.
113
CLÁUDIO SANTORO
UMA TRAJETÓRIA
C
IRINEU FRANCO PERPETUO
láudio Santoro foi um típico compositor brasileiro do século XX: foi ativo, prolífico, teve uma vida movimentada, daquelas que talvez merecessem até filme, e uma produção das mais ricas, com um catálogo1 de mais de 500 itens que abrangeu as mais diversas áreas, da ópera à música de câmera, incluindo música sinfônica, vocal, instrumental e eletroacústica. Contudo, Santoro também é típico em ter sua produção largamente desconhecida, mesmo em seu país2 . Com muita sorte, o freqüentador assíduo de concertos brasileiros terá ouvido, no máximo, o seu
114
Ponteio, para orquestra de cordas, de 1953. Trata-se, realmente, de uma peça vigorosa, de apelo nacionalista, que cai bem como item de bis em qualquer programa sinfônico; agora, convenhamos, é muita injustiça a reputação de um autor de nada menos que 14 sinfonias (um número especialmente expressivo em um país carente de sinfonistas como o Brasil, já que, durante o auge da forma sinfônica na Europa, ou seja, nos períodos cronologicamente correspondentes ao Classicismo e ao Romantismo europeus, nossos compositores dedicavam-se
115
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
essencialmente à música sacra e à ópera) repousar sobre uma pecinha de cinco minutos de duração... Fala-se muito em um “renascimento” sinfônico no Brasil, e realmente as orquestras parecem estar passando por um salto artístico importante no país; se nem elas, contudo, executarem o legado sinfônico de compositores como Santoro, como esperar, então que a música brasileira tenha a difusão internacional com que todos sonham? Isso para não tocar no fato de que muitas vezes se toca música brasileira, por aqui, para “cumprir tabela”, como se fosse uma desagradável obrigação do intérprete. Leia-se, por exemplo, a crônica da estréia de Alma, ópera de Cláudio Santoro baseada em Oswald de Andrade, escrita em 1984 e que só veio a merecer première póstuma, no Segundo Festival de Ópera de Manaus, em 1998. Mesmo ressaltando os méritos artísticos intrínsecos da obra, Márcio Páscoa3 afirma que Alma foi reduzida a um “monturo musical”: ele fala de “inépcia dramática”, orquestra e cantores “visivelmente mal ensaiados”, uma protagonista, Rosana Lamosa, “inconvincente, e com a dicção pouco clara”, e por aí vai. Contudo, ressalta: “ficou a certeza de que Alma, melhor montada e ensaiada, terá seguramente outro impacto, e pode vir a se tornar uma peça bem mais apreciável”. Parece que somos um país de um só compositor, Villa-Lobos, admitido no “clube” não apenas por seu evidente talento e inserção internacional, mas também por ser visto como uma espécie de compositor “popular” também, um precursor dos balangandãs de Carmen Miranda e dos experimentos harmônicos da bossa nova...4 E o resultado é que fica muito difícil colocar em pauta a música de outros autores “eruditos” brasileiros: paira sobre eles sempre a “sombra” de Villa-Lobos. Acontece com Villa-Lobos, no Brasil, o que Wilde denunciou sobre um certo uso perverso dos nomes dos grandes autores clássicos na arte em geral; ele é “degradado à função de autoridade”, e apropriado como “porrete para impedir a expressão livre da arte em formas novas”5 . Não é “maior” (como se houvesse critérios objetivos para mensurar esse tipo de coisa) do que Villa-Lobos? Então não serve. Imagine se esse tipo de critério fosse aplicado em
116
outros países... Se a Áustria só se importasse com compositores “maiores” que Mozart, será que alguém conheceria a música de Mahler e Bruckner? À sombra da música popular, e do nome de VillaLobos, Santoro na verdade brilhou bastante em vida. “Foi um dos raros compositores a conseguir um certo destaque na imprensa de um modo geral”, afirma Harry Crowl. “Foram vários os prêmios e homenagens recebidos por Santoro nesta época”, continua Crowl, referindo-se aos seus anos finais de vida. “O Brasil começava a reconhecer, ainda que palidamente, a importância deste compositor erudito. Porém, sua obra foi muito mais tocada na Europa. Os países do leste sempre receberam muito bem a sua música, especialmente a Bulgária, a Romênia, a então Tchecoslováquia e a União Soviética. De qualquer maneira, nenhum outro país foi tão generoso com Santoro como a República Federal da Alemanha. Lá, ele foi professor da Musikhochschule Heildelberg-Mannheim, nos anos de exílio e foi constantemente homenageado e tocado, tendo sido convidado para compor na Casa de Brahms por três ocasiões”, conclui Crowl. Filho de um oficial bersagliere italiano, Santoro começa os estudos musicais aos 11 anos de idade, ganhando um violino de um tio.6 Menino-prodígio, logo obtém bolsa do governo de seu estado natal para estudar no Rio de Janeiro, ingressando, em 1933, aos 14 anos, no Conservatório de Música da então capital federal, instituição na qual principia a dar aulas de violino e harmonia assim que conclui o curso.7 Ativíssimo, Santoro começa a compor em 1938, e participa da fundação da Orquestra Sinfônica Brasileira e do grupo Música Viva, que gravitou em torno do compositor alemão radicado no Rio Hans Joachim Koellreuter, trabalhando pela divulgação das técnicas composicionais de vanguarda no Brasil. Santoro, por sinal, ainda que instintivamente, foi o primeiro autor a empregar a técnica dos doze sons por aqui8 . Com o talento e a importância reconhecidos antes de completar 30 anos de idade9 , começou a ser laureado em concursos de composição, até ganhar, em 1946, bolsa de estudos da Fundação Guggenheim, de Nova York. Mas estávamos na Guerra Fria, e sua ligação com
o Partido Comunista acabou sofrendo retaliações políticas; depois, inviabilizando a viagem: “bastaria trabalhando em rádios, também sob que assinasse um termo negando pressão política15 . Ao longo dos anos Cláudio Santoro 50, começa a fazer uma série vínculo com o PC, mas ele se recusou alegando que não era um de aparições públicas na Europa, especialmente (mas não agitador e que o partido estava na exclusivamente) em países do bloco legalidade. O visto lhe foi negado, o que quebrou suas finanças, pois já soviético, regendo suas obras tinha inclusive alugado apartamento sinfônicas, em geral grandiloqüentes, e dotadas de grande energia. Mas em Nova York”, afirma a pesquisadora 10 há espaço para o intimismo: na Paris Iracele Vera Lívero de Souza . Não foi a primeira tentativa de de 195716, Santoro e o poeta Vinícius cooptação do compositor, que, de Moraes começam uma série posteriormente, teria aberto mão do de dez Canções de Amor que, juntas mecenato da família Guinle ao ser às Três Canções Populares, dos mesmos sabatinado ideologicamente: “minhas autores, constituem um dos mais idéias não estão à venda”, teria dito11 . bem-sucedidos corpus de lied em língua portuguesa. Bolsa, Santoro acabou ganhando, mas do governo O tom em geral melancólico, a poesia de Vinícius francês, para estudar em Paris com Nadia Boulanger e a linguagem harmônica já fizeram com que (composição) e Eugène Bigot (regência), além de fazer essas obras fossem associadas ao universo estético curso de cinema na Sorbonne12 . Existe quase da bossa-nova. 13 unanimidade entre os pesquisadores de que sua Os musicólogos gostam de dividir a produção participação no II Congresso Internacional de de Santoro em fases. Gerard Béhague17 identifica, entre Compositores Progressistas de Praga, em 1948, 1939 e 1947, uma fase “orientada na direção da levou-o a abjurar o serialismo e abraçar o atonalidade”, começando com a aplicação da técnica nacionalismo, em concordância com os princípios dos 12 tons até um uso mais flexível deste mesmo defendidos por Andrei Jdanov, comissário de cultura idioma. Um lirismo nacionalista começa a entrar em de Stálin, e que podem ser resumidos sob o rótulo campo por volta de 1945, com peças como a Sinfonia genérico de “realismo socialista”: agora a música tinha nº 2 e a Música para cordas; o compositor “começou 14 que ser feita “para as massas” . estudos sérios de música folclórica e popular brasileira” E já estava o Santoro de volta ao Brasil; em em 1949-50, e “abraçou um estilo nacionalista”, com princípio, sem emprego, proibido de voltar à OSB, afinidades com a escrita sinfônica de Prokofiev
O Brasil começava a reconhecer, ainda que palidamente, a importância deste compositor erudito. Porém, sua obra foi muito mais tocada na Europa
117
e Chostakovitch, entre 1948 e 1960 – época do Canto de Amor e Paz e das sinfonias de nº 4, 5 e 6. A década de 60 marca um breve retorno do compositor ao Brasil, em 1962, sob convite de Darcy Ribeiro, para coordenar o Departamento de Música da Universidade de Brasília. Com o golpe militar de 1964, Santoro, “o vermelho”, ficou visado; e o compositor acabou se transferindo para a então Alemanha Ocidental, com bolsa da Fundação Ford para Berlim. No novo país, seu trabalho culminou com a permanência em Heidelberg-Mannheim, como professor de regência e composição na Hochschule local (1970-78).18 O período a partir dos anos 60 também é tido como o “último”, esteticamente falando, de sua produção: o do “retorno a um serialismo qualificado e uso da aleatoriedade e outras técnicas novas”19 . É a época das Mutationen, que empregam recursos eletroacústicos, das Interações assintóticas, do sofisticado Ciclo Brecht, com obras para canto que se afastam significativamente do idioma das parcerias com Vinícius, e da Cantata elegíaca, encomendada pela Fundação Gulbenkian, e que traz passagens corais e instrumentais improvisadas20 . “Este ir e vir
estilisticamente de um lado a outro se pode notar também em alguns compositores da geração de Santoro ou da geração imediatamente seguinte”, afirma Roque Cordero21 . Em 1978, a ditadura militar brasileira começava a se abrandar, e Santoro finalmente pôde retornar à pátria, trabalhando novamente em Brasília, na Universidade, e organizando a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. O compositor continua recebendo convites do Exterior para reger e encomendas periódicas de obras da Europa; por aqui, junto com as honrarias, havia os dissabores burocráticos da direção do Teatro Nacional22 . E foi neste palco, em meio ao ensaio do primeiro concerto da temporada de 1989 – um ano em que estava programada uma série de homenagens por seu 70º aniversário – que ele sofreu o enfarte fulminante que lhe tirou a vida. Para Santoro, estar vivo e estar ativo sempre significou a mesma coisa. Talvez o que falte, agora para que sua música mereça o reconhecimento devido, seja um novo Cláudio Santoro – não um clone estético seu, mas uma personalidade musical com a mesma energia e desenvoltura, para defender suas obras e levá-las adiante no século XXI.
1. O catálogo de obras de Claudio Santoro está disponível no site http://www.claudiosantoro.art.br, cujas informações foram de grande utilidade para a elaboração deste texto.
direção à modernidade” (Musa Editora/Atravez, São Paulo, 2001), Carlos Kater, conta, à pg. 107, que Koellreuter tinha mais afinidade estética com Hindemith do que com Schönberg, até que foi levado a trabalhar com o serialismo “devido ao fato de um de seus primeiros alunos de composição, Cláudio Santoro, ter elaborado em sua Sinfonia para duas orquestras de cordas, de 1940, algumas passagens organizadas de forma serial. Como Santoro ignorasse até aquela data tudo o que se referisse à técnica dodecafônica, Koellreuter inseriu em suas aulas o estudo do assunto, encontrando aí estímulo para escrever sua primeira peça baseada no método de composição com doze notas: Invenção”. 9. Em seus 150 anos de música no Brasil – 1800-1950 ( José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1956), Luiz Heitor já o destaca como um dos nomes mais proeminentes de sua geração e, embora ainda não consiga ver com clareza que tipo de caminho estético o autor amazonense trilharia, vaticina, sem pestanejar: “Mas de uma coisa está certo: que ela [sua música] continuará sendo música de qualidade invulgar, pois não importa qual seja a linguagem empregada para sua exteriorização, a fina sensibilidade de Santoro impõe sempre a tudo o que ele escreve um nível a que só os compositores de grande raça têm acesso” (pg. 365).
2. Os intérpretes “quixotescos” que gravaram a música de Santoro estão listados na discografia que aparece ao final do artigo. Nela, optou-se não por fazer uma lista completa de todos os fonogramas de Santoro, nem de cada CD gravado (essas listas também estão disponíveis no site. Ver nota 1), mas por elencar os discos disponíveis comercialmente no momento da publicação deste texto. 3. PÁSCOA, Márcio. Cronologia Lírica de Manaus, pg. 425-7, Governo do Estado/Editora Valer, Manaus, 2000. 4. APPLEBY, David P.. Heitor Villa-Lobos – A Life (1887-1959), pg. 179-80, The Scarecrow Press, Boston, 2002. 5. WILDE, Oscar. The Soul of Man under Socialism, pg. 37, in De Profundis and Other Writings, Penguin Classics, Londres, 1986. 6. MARIZ, Vasco. Cláudio Santoro, pg. 15, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1994. 7. Enciclopédia da Música Brasileira, pg. 710-12, Art Editora/ Publifolha, São Paulo, 1998. 8. No seu “Música Viva e H. J. Koellreuter – movimentos em
118
10. SUGIMOTO, Luiz. Santoro, uma vida contada ao piano, in Jornal da Unicamp, edição 224. Souza defendeu a dissertação de mestrado “Santoro: Uma história em miniaturas. Estudo analítico interpretativo dos prelúdios para piano de Cláudio Santoro” em agosto de 2003, na Unicamp, pesquisando largamente a correspondência do compositor com o musicólogo Francisco Curt Lange, amigo e incentivador de Santoro. 11. PORTO, Regina. “A herança utópica”, pg. 72, in Revista Bravo, São Paulo, março de 1999. 12. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 20. 13. Uma exceção de peso é Flávio Silva, que sustenta, com argumentação convincente, que “a conversão de Santoro ao nacionalismo musical deve ter ocorrido antes de o compositor participar do Congresso de Praga, em maio de 1948. O corte com o dodecafonismo parece ter sido radical, sem o gradualismo com que Guerra-Peixe se afastou dessa corrente”. A argumentação é desenvolvida em “Abrindo uma carta aberta”, in “Camargo Guarnieri – o tempo e a música”, org. Flávio Silva, Funarte/Imprensa Oficial do Estado, Rio de Janeiro, 2001. 14. “Se a sociedade socialista constituiu um progresso sobre a capitalista, se a classe proletária é a classe revolucionária, é necessário que a arte reflita os anseios da nova classe para que seja uma arte progressista. A arte feita nos países capitalistas reflete a classe dominante, portanto é decadente”; trecho de artigo de Cláudio Santoro na revista Fundamentos, em 1948/9, citado por Silva, Flávio, op. cit. 15.“Foi deposto do cargo de diretor musical da Rádio Clube – emissora montada por Samuel Wainer- por pressão de Carlos Lacerda”. Porto, Regina, op. cit., pg. 71. 16. Conta Iracele Vera Lívero de Souza (in Sugimoto, Luiz, op. cit.) que Santoro enamorara-se de Lia, a tradutora russa que o acompanhara na turnê russa de 1957. Mulher de “olhos profundos, melancólicos e cheios de ternura”, Lia era casada com um funcionário do KGB, o que fez com que o compositor tivesse que deixar a URSS. Refugiado na embaixada brasileira em Paris, lá conheceu Vinícius de Moraes, com o qual escreveu as 13 canções “dor-de-cotovelo”.
DISCOGRAFIA
SONATAS PARA VIOLINO E PIANO DE CLÁUDIO SANTORO. Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano. JHO Music, 1995 MÚSICA BRASILEIRA PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO (Inclui o Trio de 1973) Jerzy Milewski, violino; Márcio Malard, violoncelo; Aleida Schweitzer, piano Rio Arte Digital, 1996 CLÁUDIO SANTORO – UM CONCERTO, TRÊS SONATAS, UMA SONATINA, UM
CANTO, UM VOCALISE E UMA MÚSICA PARA ORQUESTRA DE CORDAS
Vários intérpretes Soarmec, 1998 PRELÚDIOS E CANÇÕES DE AMOR. Aldo Baldin, canto; Lílian Barreto, piano. Sonata, 1998 DUO HADELICH SALGADO – BRASILIAN COMPOSERS (inclui a Fantasia Sul América, Elegia nº 1 e Elegia nº 3). Valeska Hadelich, violino; Ney Salgado, piano. Vox, 1998 5 SONATAS DE CLÁUDIO SANTORO PARA VIOLINO E PIANO Mariana Salles, violino; Laís de Souza Brasil, piano ABM Digital, 1999 SANTORO - SINFONIA Nº 5 Orquestra Sinfônica Brasileira/regência Cláudio Santoro. Festa, 1999 GRANDES PIANISTAS BRASILEIROS (inclui as Paulistanas 1-7). Fritz Jank, piano. Master Class, 2000 ORQUESTRA FILARMÔNICA NORTE NORDESTE (inclui o Mini-Concerto Grosso). Aylton Escobar, regente. CPC-Umes, 2000 BRASILIANA: THREE CENTURIES OF BRAZILIAN MUSIC (inclui as Paulistanas 1 e 4). Arnaldo Cohen, piano. BIS, 2000 CONVERGENCES – BRAZILIAN MUSIC FOR STRINGS (inclui o Ponteio). Camerata Fukuda/Celso Antunes, regente. Paulus, 2001
17. SANTORO, Cláudio, in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, editado por Stanley Sadie, vol. 16, pg. 483-5, Londres, Macmillan Publishers Limited, 1980.
O PIANO DE CLÁUDIO SANTORO. Gilda Oswaldo Cruz, piano. Biscoito
18. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 61.
CANÇÕES DE AMOR E PRELÚDIOS. José Hue, canto; Heitor Alimonda,
19. BÉHAGUE, op. cit. 20. Na Alemanha, Santoro pôde, ainda, dedicar-se a outra de suas paixões, a pintura. “É também desse estágio em Berlim a composição de quadros sonoros. Finalmente, teve um pouco de tempo para se dedicar à pintura, realizando então quadros musicais que utilizam aparelhagem fotoelétrica, a qual, automaticamente, toca trinta segundos de música abstrata eletroacústica, quando uma pessoa se aproxima. Dessa série teve duas litografias impressas em Paris e gostaria de ter prosseguido tais experiências, caso houvesse encontrado um
Fino, 2001 piano. Produção independente, sem data
técnico em eletrônica que resolvesse os problemas de apresentação simultânea desses quadros musicais”. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 45. 21. CORDERO, Roque, Vigencia del músico culto, pg. 165, in “América Latina en su música”, relatora Isabel Aretz, Unesco/Siglo Veintiuno Editores, México, 1997. 22. MARIZ, Vasco, op. cit., pg. 56.
IRINEU FRANCO PERPETUO Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona) e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).
119
OS EVENTOS PARA DIVULGAÇÃO DA
MÚSICA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL
O
EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES
s eventos para divulgação da música brasileira contemporânea tiveram a importante função de colocar a produção da nova música de concerto em contato com um público amplo, além das fronteiras do meio universitário. A idéia de realizar esses festivais teve início na década de 60 em três núcleos principais: Salvador, no Estado da Bahia, no Rio de Janeiro, na época Estado da Guanabara e em Santos, no Estado de São Paulo. A realização desses
120 120
eventos sempre esteve subordinada ao apoio institucional dos órgãos governamentais de promoção da cultura e muitas vezes a continuidade, ou não, desses eventos, dependeu do interesse e da vontade política das autoridades que chefiavam essas instituições. A persistência na realização desses festivais, sua continuidade, foi resultado de um engajamento pessoal de alguns compositores que levaram adiante esse ideal de difundir a música nova
e promover o encontro das mais diversas tendências musicais e estéticas do país. Cada festival teve também algumas características próprias ao lidar com os vários aspectos e enfoques na divulgação da produção musical contemporânea. Atualmente, os únicos festivais que mantém sua programação, apesar das dificuldades financeiras, da falta de apoio quase total das instituições que deveriam promover a música de concerto brasileira e com algumas interrupções, são a Bienal de Música Brasileira Contemporânea no Rio de Janeiro e o Festival Música Nova em Santos. A época áurea desses festivais, nos anos 60 e 70, coincidiu com um dos momentos mais tensos da vida cultural do país, quando a ditadura militar usou do veto da censura para tentar controlar as idéias e as produções artísticas dos mais variados seguimentos da comunidade cultural e artística do país. As intenções desses músicos se confundiam entre o interesse da renovação e revitalização da linguagem musical, a necessidade da livre expressão das idéias e o direito de protestar perante tamanho abuso de autoridade dos que estavam ilicitamente no poder. Nesse artigo descrevo sinteticamente as atividades realizadas pelos principais eventos que mantiveram uma programação regular exclusivamente voltada para a divulgação da música contemporânea no Brasil, mas é necessário ressaltar que outros festivais também esporadicamente criaram espaços para a música nova, dos quais cito o Festival de Inverno de Campos do Jordão, o Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais, Cursos de Verão de Curitiba e os Seminários Internacionais de Música da Bahia entre outros. GRUPO DE COMPOSITORES DA BAHIA
A divulgação da nova música em Salvador na Bahia foi resultado direto da atuação do Grupo de Compositores da Bahia liderados pelo compositor Ernst Widmer. Esse grupo de compositores contou em sua formação com os nomes de Lindembergue Cardoso, Fernando
Cerqueira, Nicolau Kokron, Milton Gomes, Jamary Oliveira, Rinaldo Rossi, Antonio José Santana Martins (Tom Zé) e Jamary Oliveira. Ernst Widmer, que teve atuação decisiva na formação musical e ideológica desse grupo de compositores, assim se expressa sobre sua intenção de reorganizar os meios formais da construção musical: “... procuro sempre estimular a composição ‘livre’, paralela e anterior ao estudo da teoria, da harmonia, da análise, do contraponto, da fuga, do cânone, do prelúdiocoral, dos ricercarsonatavariaçãorondos, para evitar aquela música fictícia, geralmente produzida alheia à vivência, em cursos acadêmicos demasiadamente teóricos e restritos”. Widmer, nascido na Suíça, pátria do Dadaísmo, e atuante no meio cultural baiano desde 1956, assina com outros componentes do grupo a provocante Declaração de Princípios dos Compositores da Bahia em 30 de novembro 1966: “Artigo único – principalmente estamos contra todo e qualquer princípio declarado”. E dando prosseguimento ao documento: “1) Qualquer aplauso ou manifestação... (censurado) é considerado subversão; 2)Manifestações permitidas: vaias, assobios, tomates e ovos podres; 3) Com referência aos intérpretes, faz-se necessário salientar que são inocentes. Convém poupá-los para poderem atuar nos próximos concertos; 4) Aconselha-se aguardar o final onde haverá uma pequena demonstração de civilização – explosão de instintos...(censurado); 5) O que ocorrer de normal não será de nossa responsabilidade; 6) Não se revoguem indisposições ao contrário”. As primeiras apresentações de obras desse grupo se dão em abril de 1966 durante o evento Semana Santa na Bahia, cujas obras tinham tema ou texto de caráter religioso, e em novembro do mesmo ano em um Concerto Popular com a participação da Orquestra Sinfônica da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir de 1967 o evento é denominado Apresentação 121 121
de Compositores da Bahia e segue sendo realizado até o ano de 2000. A partir de 1983 o evento torna-se bienal. Como esclarece o título, o evento visava difundir a produção dos compositores do grupo baiano, mas algumas peças de outros compositores brasileiros eventualmente eram incluídas no festival. Além da apresentação das obras era realizado um concurso que premiava as peças mais representativas por um júri formado por diversos compositores brasileiros e uma das obras recebia um prêmio do público participante. O grande benefício que o evento proporcionava aos compositores era permitir uma “constelação criadorintérprete-público, ou seja, uma escola-extensão, uma prática de auto-educação: o compositor reconhece seus erros e tentos somente através da execução ao vivo de suas obras” (Widmer). Com essa proposta, o grupo da Bahia se destacava no plano musical do país, dando oportunidade aos compositores de se apresentarem num concurso ao vivo, como comenta Cidinha Mahle no “Jornal de Piracicaba” em dezembro de 1967: “Chama a atenção o fato de que a Bahia está sendo Iº Festival de Música da Guanabara. O Globo. 24.05.69. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
122 122
praticamente o único Estado da federação a estimular o jovem artista compositor de música erudita”. O compositor Bruno Kiefer também comenta em um artigo de o “Correio do Povo” de Porto Alegre em novembro do mesmo ano: “ Encerrou-se no dia 19 de novembro um concurso singular, realizado na Bahia (...) A singularidade reside no fato de terem sido unidos um concurso de composição erudita e outro de música popular. Uma conseqüência básica dessa união foi esta: gente de música popular assistindo aos concertos de música erudita e vice-versa. (...) Os concorrentes foram quase todos jovens de vinte e poucos anos, educados musicalmente nos Seminários de Música da Universidade. Impressionou a solidez do artesanato. Esteticamente avançados. Mas o conceito de avançado merece uma posição crítica. Costuma ser considerado avançado, ou de vanguarda, aquilo que corresponde a um modo de pensar europeu. Tendo em conta que a arte nasce da necessidade de expressar e estruturar a realidade em que vive o artista, é singular que um grupo de compositores jovens da Bahia, salvo um, expresse algo que, basicamente, não é nosso. Mesmo levando em conta o pensamento europeu, essa influência em nossa cultura, ainda incipiente, não vemos razão nenhuma para ignorar o que é especificamente nosso. E isso justamente na Bahia, o coração do Brasil. (...)” Entre os vários intérpretes e conjuntos encarregados da execução de tantas obras inéditas e cúmplices das propostas estéticas do grupo baiano, podemos destacar: Orquestra Sinfônica da UFBA, Conjunto de Metais da UFBA, Grupo Experimental de Percussão da UFBA, Madrigal da UFBA, Trio da Universidade da Bahia (Moysés Mandel, Piero Bastianelli e Pierre Kose), Afrânio Lacerda, Quinteto
de Sopros da UFBA, Erick Vasconcelos, Fernando Lopes, Quarteto de Cordas da Bahia e Conjunto Música Nova da UFBA (depois Bahia “Ensemble”) sob direção de Piero Bastianelle. Além dos compositores fundadores do grupo, há de se destacar a atuação do inventor de instrumentos e novíssimas sonoridades Walter Smetack, que com suas inéditas propostas de luteria incentivou a criação de novas obras especialmente escritas para singulares fontes sonoras. Entre os compositores que se destacaram na programação desse núcleo baiano, podemos citar Paulo Costa Lima, Wellington Gomes, Agnaldo Ribeiro, Lucemar Ferreira, Ricardo Bordini, Ângelo Castro, Pedro Kröger, Pedro Augusto Dias e Fernando Burgos. O compositor Paulo Costa Lima idealizou e coordenou a partir de 1986 até 1992, a Semana da Música Contemporânea, evento realizado dentro da programação dos Seminários Internacionais de Música da Bahia e depois incorporado a esse último a partir de 1993. FESTIVAL DE MÚSICA DA GUANABARA E BIENAL DE MÚSICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA.
Edino Krieger é um dos compositores mais atuantes na criação e realização dos eventos para a divulgação da música brasileira contemporânea. Sua atuação frente ao MIS (Museu da Imagem e do Som) e do Instituto Nacional de Música, órgão ligado a Funarte (Fundação Nacional de Arte) foi decisiva para a criação dos Festivais de Música da Guanabara, das Bienais de Música Brasileira Contemporânea e no apoio à promoção de outros eventos tais como os Ciclos de Música Contemporânea de Belo Horizonte, as Apresentações de Compositores da Bahia e o Encontro de Compositores Latino Americano (Encompor) em Porto Alegre. O I Festival de Música da Guanabara foi realizado em 1969 com a participação e apoio do Secretário da Educação e Cultura do então Estado da Guanabara Gonzaga da Gama Filho. O formato do evento era de um festival-concurso que revelou ao
público uma nova geração de compositores. As obras foram executadas pelo Coro e Orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com grande sucesso de público, e foram selecionadas por um júri formado por renomados compositores: Fedele D’Amico da Itália (presidente), Franco Autori dos EUA, Fernando Lopes Graça de Portugal, Hector Tosar do Uruguai, Roque Cordero do Panamá, e maestros brasileiros e estrangeiros. Nesse primeiro festival das 14 obras finalistas, cinco foram premiadas: Pequenos Funerais Cantantes, de Almeida Prado; Concerto Breve, para piano de Marlos Nobre, Procissão das Carpideiras, de Lindembergue Cardoso, Heterofonia do Tempo, de Fernando Cerqueira e Primevos e Postrídios, de Milton Gomes. Na execução das obras se destacaram os solistas Maria Lúcia Godoy, Nelson Portela, Arnaldo Estrela e Eládio Perez-Gonzales. As obras foram regidas por Mário Tavares, Henrique Morelenbaum e Armando Krieger. O II Festival de Música da Guanabara, realizado em 1970 recebeu 126 inscrições de toda a América Latina. O júri foi presidido por Francisco Mignone e integrado por Guillermo Espinoza, Colômbia; Franco Autori, USA; Tadeusz Baird, Polônia; Vaclav Smetacek, Tchecoslováquia; Jorge Peixinho, Portugal; Garcia Morillo, Argentina; Domingo Santa Cruz e Gustavo Becerra, Chile; Hector Tosar, Uruguai; e Roque Cordero, Panamá. Os premiados nas categorias música de câmara e sinfônica foram: Sinopsis, de Ernst Widmer; Mosaico, de Marlos Nobre; Espectros, de Lindembergue Cardoso; Pequeño Tríptico, de José Ramon Maranzano, da Argentina; Ludus II de Hilda Dianda, da Argentina e Missa Breve, de Aylton Escobar. Com a morte de Gama Filho logo após a realização do segundo evento, o projeto do terceiro festival foi encaminhado ao seu sucessor na Secretaria de Educação e Cultura, Vieira de Mello, que na época da realização dos dois primeiros era diretor do Teatro Municipal, que sob alegação de falta de recursos, o arquivou. Edino Krieger elaborou então o projeto das Bienais de Música Brasileira 123 123
Contemporânea só realizado em 1975 graças à colaboração de Myriam Dauelsberg que dirigia à época a Sala Cecília Meireles. As Bienais se tornaram o mais importante espaço aberto para a mostragem periódica da produção musical brasileira mais recente. Um amplo painel democrático das mais variadas tendências da música brasileira de concerto atual que vem promovendo o intercâmbio de compositores e intérpretes de todas as partes do país, divulgando obras de autores consagrados e revelando os novos valores 1. Ao promover o encontro das diversas gerações de compositores as Bienais, permitiram que as mais diversas tendências fossem confrontadas revelando o imenso pluralismo das tendências estéticas da música brasileira contemporânea. Além dos concertos que consolidaram um caráter festivo, de confraternização do evento, uma programação paralela constituída de debates, mesas redondas, mostra de filmes e lançamentos de gravações, partituras e livros, permitiu que uma ampla troca de informações entre intérpretes e compositores fosse vinculada pelos meios de comunicação, tornando-se espaço privilegiado da produção musical brasileira.
Disco da I Bienal Brasileira de Música Contemporânea. (1975) FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
124 124
1. Citar todos os nomes dos compositores e intérpretes aqui, será impossível, mas de forma bastante resumida podemos destacar: I Bienal (1975, 35 compositores participantes): José Siqueira, Radamés Gnattalli, Francisco Mignone, Souza Lima, Camargo Guarnieri, Edino Krieger, Cláudio Santoro, GuerraPeixe, Bruno Kiefer, Ernst Widmer, Jocy de Oliveira, Fernando Cerqueira, Lindembergue Cardoso, Jamary Oliveira, Ayton Escobar, Jorge Antunes, Guilherme Bauer, Cirley de Hollanda, Jaceguay Lins, Ronaldo Miranda, Roseana Yampolschi, Paulo Chagas, Dawid Korenchendler e Marco Antonio Guimarães. II Bienal (1977, 42 compositores participantes): Gilberto Mendes, Agnaldo Ribeiro e Luiz Carlos Vinholes. III Bienal (1979, 48 compositores participantes): Eunice Katunda, Fructuoso Vianna, Luís Cosme, Brasílio Itiberê, Heitor Alimonda, entre outros compositores ligados ao Movimento Música Viva, destaque na programação, sob a tutela de H. J. Koellreuter. VI Bienal (1981, 52 compositores participantes): Tim Rescala e Tato Taborda dirigindo o Grupo Juntos – Música Nova. V Bienal (1983): Mário Ficarelli, Ricardo Tacuchian, Osvaldo Lacerda, Ernst Mahle, Odemar Brígido, Ernani Aguiar e uma exposição dedicada a Ester Scliar. VI Bienal (1985; 67 compositores participantes): Eli-Eri Moura, José Alberto Kaplan, Arthur Kampela, Nestor de Hollanda Cavalcanti, Mariza Rezende, Pauxy Nunes, Luiz Carlos Csëko, Rodolfo Caesar, Eduardo Guimarães Álvares, Roberto Victorio, Willy Correa de Oliveira e Marcos Lavigne. VII Bienal (1987, 79 compositores participantes): Rodrigo Cicchelli, Luigi Irlandini, Wellington Gomes, Paulo Costa Lima e Leonardo Sá. VIII Bienal (1989; 86 compositores participantes): Destaque da programação concerto de abertura em homenagem aos 20 anos do I Festival de Música da Guanabara, Edmundo VillaniCortes, Harry Crowl, Grupo Multimedia de Belo Horizonte, João Guilherme Ripper e homenagem póstumas a Lindembergue Cardoso, Cláudio Santoro e Paulo Libânio. IX Bienal (1991): Oiliam Lana e grupo de compositores mineiros. X Bienal (1993, 85 compositores participantes): Flô Menezes, Sílvio Ferraz, Eduardo Seincman, Lelo Nazário, Dalga Larondo e Silvia de Lucca. XI Bienal (1995; 92 compositores participantes): Fernando Iazzetta, Sergio Igor Schnee. XII Bienal (1997). XIII Bienal (1999) Curadoria de Cirlei Hollanda. Retrospecção da programação de anos anteriores. XIV Bienal (2001). Concurso de composição para várias categorias. Alexandre Schubert, Caio Senna, Bruno Ruviaro. XV Bienal (2003). Curadoria de Flávio Silva e Maria José de Queiroz Ferreira. Calimério Soares, Dimitri Cervo, Chico Melo, Marcos Lacerda, Sérgio Freire, Pedro Kröger, Marcus Siqueira, Antônio Ribeiro e Silvia Berg.
FESTIVAL MÚSICA NOVA DE SANTOS E SÃO PAULO
O Festival Música Nova de Santos foi realizado pela primeira vez em 1962. Foi uma conseqüência direta das idéias e propostas contidas no Manifesto Música Nova que deu suporte teórico e ideológico ao Movimento Música Nova, cujas atividades na época giravam em torno da Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida por George Olivier Toni; do Madrigal Ars Viva de Santos, dirigido por Klaus Dieter Wolf; e do movimento do Grupo Noigrandes dos poetas concretistas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. O Festival Música Nova nasceu sob a luz das diretrizes européias do “Neue Musik”, marcada por uma posição internacionalista que visava liberar a cultura brasileira “das travas infra-estruturais e das super-estruturas ideológico-culturais então dominantes”, conforme declara José Maria Neves em seu livro Música Contemporânea Brasileira de 1977. A programação do evento, sob direção artística do compositor santista Gilberto Mendes, privilegiou o intercâmbio com as várias correntes estéticas da música contemporânea mundial, dando continuidade às atividades desenvolvidas desde a década de 40 pelo grupo Música Viva dirigido por H. J. Koellreutter. A história da realização do festival pode ser dividida em três momentos distintos: de 1962 a 1964 marcada pelas proposições estéticas e ideológicas contidas no Manifesto Música Nova e da “Neue Musik” alemã, com ênfase na divulgação das obras de Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira, signatários do documento, interrompida pelo golpe militar de 1964. Nesse primeiro momento o evento ainda era denominado Semana de Música de Vanguarda. Um segundo momento teria início a partir da continuidade do festival em 1968, quando é dada ênfase à música ibero-americana. Entre 1970 e 1980, tendo os compositores esgotado as propostas da “Neue Musik”, voltam-se à criação de uma música mais comunicativa, mais politicamente engajada. No entanto essa intenção em escrever uma música mais
Programa do 1º Ciclo de Música Contemporânea de Belo Horizonte, 1984.
comunicativa, de certa forma se contrapunha à idéia de produzir um festival para um público restrito, como nas primeiras edições do evento. Essa mudança de rumos, que seria um terceiro momento do percurso, faz a ideologia do festival se aproximar estilisticamente das idéias pós-modernas do movimento europeu Nova Consonância, principalmente das idéias difundidas pelo compositor belga Boudewijin Buckninx. A realização do Festival Música Nova sempre esteve vinculada ao apoio dos órgãos de promoção cultural da Prefeitura Municipal de Santos, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e recebendo patrocínio eventual de outras instituições. A partir de 1997 até 1999, a realização do festival foi amplamente revitalizada pelo apoio cultural e patrocínio do Instituto Cultural Itaú, depois Itaú Cultural, que permitiu que as dificuldades financeiras fossem superadas, obtendo uma maior repercussão na mídia e a participação da nova Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo em sua programação, sob direção de John 125 125
Neschling. O festival contou também com a colaboração de outros compositores que dividiram as funções de coordenação artística e produção com Gilberto Mendes: Rodolfo Coelho de Souza, Conrado Silva, José Augusto Mannis, Eduardo Guimarães Álvares e Rubens Ricciardi e atualmente o musicólogo Lorenzo Mami, diretor do Centro Universitário Maria Antônia da Universidade de São Paulo. CICLOS DE MÚSICA CONTEMPORÂNEA DE BELO HORIZONTE E FESTIVAL ARTICULAÇÕES
O Ciclo de Música Contemporânea de Belo Horizonte
Programa da Bienal Brasileira de Música Contemporânea de 2003 (XV Bienal). FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
126 126
foi idealizado pelo pianista Paulo Álvares, coordenador do Núcleo de Música Contemporânea de Belo Horizonte. A realização do primeiro evento, ocorrido em março e abril de 1984, foi possível graças ao patrocínio do Instituto Goethe de Belo Horizonte e do apoio institucional da Fundação de Educação Artística ao qual o Núcleo estava vinculado. O que marcou a trajetória do Ciclo na programação cultural de Belo Horizonte foi uma ampla participação do público que lotava as salas de concerto, graças ao apoio dos meios de comunicação, principalmente dos jornais “A Tribuna de Minas” e do “Estado de Minas” e mais tarde da TV Minas, ligados à Secretaria de Estado da Cultura. Essa ampla participação do público se deu também devido à realização de concertos-debates, mostras de filmes e vídeos, performances no meio universitário, em teatros e outros locais, como uma programação prévia e preparatória ao acontecimento do evento. O apoio e patrocínio do Instituto Nacional de Música da FUNARTE foram decisivos para que o evento continuasse a ser realizado a partir da segunda edição, permitiu a expansão da programação, do número de participantes locais e convidados, e deu projeção nacional às atividades realizadas pelos compositores de Belo Horizonte. A partir do III Ciclo a coordenação foi assumida pelo compositor Eduardo Guimarães Álvares, então professor da Fundação de Educação Artística. A programação do evento era constituída na sua maior parte por concertos que difundiam: 1) as obras chaves referenciais de autores consagrados que determinaram as novas maneiras de pensar a música; 2) obras do século XX pouco executadas em concertos; 3)obras comprometidas com a experimentação incluindo as linguagens da música em interface com as artes visuais e cênicas; 4)obras de compositores brasileiros e de Belo Horizonte,
tais como João Francisco de Paula Gelape, Gilberto Machado, Oiliam Lana, Guilherme Paoliello, Rogério Vasconcelos, Robson Santos, Harry Crowl, Sergio Canedo, Nelson Salomé, Bruno Pataro, Sérgio Freire, Eduardo Campos, Lourival Silvestre, Eduardo Campolina, Fanuel Lima, Antonio Celso Ribeiro, Rogério Vieira, Bruno Drumond Afi, Avelar Junior, Marcus Viana, Marco Antonio Guimarães com grupo Uakti e Ione Medeiros dirigindo a Officina Multimédia. O compositor Ernst Widmer durante a realização do V e VI Ciclos, teve uma atuação importante na consolidação do evento escrevendo uma série de artigos e críticas para os jornais de Belo Horizonte, assim como notas para o programa do VI Ciclo onde declara: “Ai de nós se as escolas de arte relegarem a criação ao segundo plano. Daí a importância do Ciclo. Traz lufadas novas, oxigênio, debate para valer e à flor da pele”. No entanto essa predisposição ao debate e à polêmica não foi muito bem recebida ou entendida por um grupo de músicos de Belo Horizonte, ligados à Fundação de Educação Artística e à Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, que assumiram a coordenação do evento em 1990. O Ciclo quase correu o risco de se tornar mais um evento ligado à vida acadêmica dessas instituições. Por negociação do criador do evento, Paulo Álvares, os Ciclos continuaram a ser realizados pelo Núcleo de Música Contemporânea de Belo Horizonte, agora desvinculado da Fundação de Educação Artística. Uma importante iniciativa realizada pelo Ciclo de Música Contemporânea de Belo Horizonte foi a realização em 1991 do Encontro Nacional dos Organizadores de Eventos para Divulgação da Música Nova que teve a intenção de sincronizar as atividades de programação entre todos os festivais que ocorriam na época, com o objetivo de criar um circuito musical nacional. Desse encontro participaram: Conrado Silva e Gilberto Mendes (Festival Música Nova), Cristina Caparelli Gerling e Fred Gerling (UFRS), Jamary Oliveira e Piero
Bastianelli (Encontro de Compositores da Bahia), João Guilherme Ripper e Ricardo Tacuchian (Panorama da Música Brasileira ) e José Augusto Mannis do Centro de Documentação de Música Contemporânea da Unicamp. O Ciclo também foi responsável pela execução de obras raramente executadas no país dos compositores Edgard Varèse (Octandre, Offrandes e Hyperprism), Stockhausen, Luciano Berio, Leos Janácek, Radulesco, Maurizio Kagel, Nancarrow, entre outros. Uma versão realizada a partir dos fragmentos deixados por Debussy da ópera La Chute de La Maison Usher foi estreada no IV Ciclo em 1987. Em 1995 e 1996 o Ciclo passou a ser realizado com o apoio da Fundação Clóvis Salgado no Palácio das Artes dentro do Festival Articulações. Pela primeira e única vez tomou parte da programação a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais sob regência de Henrique Morelenbaum. ENCOMPOR – ENCONTRO DE COMPOSITORES LATINO-AMERICANO (1987 –2001)
O Encontro de Compositores Latino-Americanos foi o mais importante evento realizado na região sul do Brasil, em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. De certa forma foi a concretização das idéias de dois grandes compositores gaúchos muito atuantes e que formaram toda uma geração de novos criadores: Bruno Kiefer e Armando Albuquerque. Já no início da década de 60 eram realizados na capital gaúcha os Seminários Livres de Música (SELIM), compostos de painéis, conferências e concertos com a participação dos dois compositores mencionados, e que contou com o importante incentivo do crítico literário Carlos Jorge Appel, ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nesses encontros eram discutidas e divulgadas as inovações musicais recentes que chegavam da Europa. Quando Appell assumiu o Conselho Estadual de Desenvolvimento Cultural do Rio Grande do Sul em 1988, começou a esboçar o projeto do Encompor com a participação de pessoas 127 127
ligadas à vida musical de Porto Alegre. Coube a Hélvia Miotto Juchen, ligada ao Instituto Estadual de Música, ser a primeira coordenadora desse evento e sua participação se estendeu até o ano de 1998. A programação dos festivais constava de concertos, painéis e debates visando o estudo e a divulgação da produção de compositores locais, fortalecer o intercâmbio entre compositores e intérpretes e democraticamente garantir um espaço para as mais diversas tendências da linguagem musical contemporânea. Em cada ano o evento escolhia um
Programa do 33º Festival Música Nova realizado no Itaú Cultural em São Paulo, 1997.
128 128
compositor para ser homenageado, sendo que no primeiro o destaque foi Armando Albuquerque. Esse primeiro evento, realizado em setembro de 1988 contou também com a importante participação de dois outros compositores da região sul do Brasil: Henrique de Curitiba e Padre Penalva. Nos painéis que discutiram a formação dos compositores contemporâneos, seu papel na educação musical e a identidade da música brasileira tomaram parte os compositores Flávio de Oliveira, José Alberto Kaplan, Ernst Widmer, Henrique Morozowicz e Edino Krieger. A orquestra Sinfônica de Porto Alegre encerrou a programação do evento tocando obras de Armando Albuquerque, Padre José Maurício, Lorenzo Fernandes, Bruno Kiefer, Oswaldo Lacerda, Francisco Mignone, Villa-Lobos e Paulo Moura. No II Encompor, realizado em 1989, o espaço de divulgação e intercâmbio foi estendido a outros países latino-americanos do cone sul tais como Argentina e Uruguai. O homenageado foi Bruno Kiefer. O III Encompor só foi realizado em 1990 e convidou compositores de outros estados brasileiros além dos compositores latino americanos. Para homenagear Ernst Widmer, que veio a falecer meses antes do evento se realizar, participou do evento o Bahia Ensemble que apresentou obras de sua autoria. Devido às mudanças de governo e alteração das políticas culturais dos órgãos gerenciadores das atividades culturais do Estado, o festival foi interrompido por quatro anos. As atividades foram retomadas com a volta de Carlos Jorge Appel ao cargo de Secretário da Cultura do Rio Grande do Sul e em 1997 foi realizado o IV Encompor, que contou também com a participação do Instituto Goethe de Porto Alegre, graças ao interesse de seu diretor Hartmut Becher e da equipe da Discoteca Pública Natho Henn. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) participou do evento cuja programação constava de cinco concertos, dois painéis e duas conferências. Os compositores gaúchos Celso Loureiro Chaves, Antonio
Carlos Cunha Borges, James Correa e Flávio de Oliveira também tiveram uma participação mais ativa na realização do evento, que contou ainda com a presença de Graziela Paraskevaidis, do Uruguai. Esse evento ficou marcado pelo embate que ocorreu durante os ensaios entre os integrantes da OSPA e do regente convidado J. H. Kollreutter que estava sendo homenageado no encontro. Em 1996 o V Encompor criou uma comissão encarregada da direção artística e produção formada pelos compositores Antonio Carlos Borges da Cunha, Celso Loureiro Chaves, Flávio de Oliveira, Liane Hentschke e do percussionista Ney Rosauro. O homenageado dessa edição do encontro foi o compositor Edino Krieger, grande incentivador da realização do evento. O Departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul teve uma participação efetiva. O Compositor Antonio Carlos Borges Cunha idealizou e dirigiu o Ensemble Cantus Firmus, conjunto criado como resultado da efetiva ebulição das atividades musicais contemporâneas na cidade. O VI Encompor foi realizado em 1998. No concerto de abertura foram executadas obras de todos os compositores homenageados nos eventos anteriores, incluindo na programação obras da compositora carioca Esther Scliar, destaque do encontro. Participaram também o Amazônia Jazz Ensemble e o Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Obras de compositores consagrados como Ligeti e Xenakis constaram ao lado de outras de compositores brasileiros e latino americanos, tais como: Ney Rosauro, Almeida Prado, Sergio Igor Schnee, Ricardo Tacuchian, Antonio Carlos Costa, Iuri Correa, Antonio Carlos Cunha Borges, João Guilherme Ripper, Fernando Cerqueira, Dimitri Cervo, Dante Grella,
Caio Senna, Celso Mojola, Felipe Adami, Leonardo Boff, Thiago Holl Curi, Arthur Barbosa, Celso Loureiro Chaves, James Correa, Fernando Mattos, Christian Benvenutti, Edson Zampronha, entre outros. O evento teve ainda a participação do George Crumb Trio interpretando obras de Guilherme Bauer e Harry Crowl. O grupo Ex-Machina, formado pelos jovens compositores Yanto Laitano, Antônio Nunes, Alexandre Birnfeld, Martinêz Nunes e Adolfo Almeida, apresentou obras de uma nova vertente da criação musical local, integrando recursos eletroacústicos aos instrumentos tradicionais, eletrodomésticos e recursos cênico-musicais. O VII Encompor foi realizado em 2001 com a coordenação dos compositores Flávio de Oliveira e Ricardo Mitidieri e homenageou o compositor Walter Schultz Porto Alegre. Participaram 59 compositores de todo o Brasil e da América Latina. As notas de programa são assinadas por Ricardo Mitidieri: “ (...) o Encompor prossegue desempenhando o importante papel de dar visibilidade a uma atividade artística que definitivamente não está integrada ao ‘mercado’. Por essa razão, o evento parece ser índice de um critério alternativo ou, ao menos, contraposto a critérios que levam à instrumentalização da cultura artística como, por exemplo, o critério econômico único vigente”. Um próximo evento está previsto para 2005. Finalizando, agradeço a todos que me forneceram importantes informações e documentos que muito ajudaram na elaboração do artigo: Edino Krieger (Festivais da Guanabara e Bienais), Piero Bastianelli, Paulo Costa Lima, Wellington Gomes (Encontro de Compositores da Bahia), Antonio Eduardo Santos (Festival Música Nova), Hélvia Miotto Juchen, Ricardo Mitidieri e Antonio Carlos Cunha (Encompor).
EDUARDO GUIMARÃES ÁLVARES Compositor e organizador de vários eventos para divulgação da música contemporânea. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes em Belo Horizonte e coordenador musical da Orquestra Sinfônica da Rádio e TV Cultura de São Paulo.
129 129
Pluralidade Estética PRODUÇÃO MUSICAL ERUDITA NO BRASIL A PARTIR DE 1980 HARRY CROWL
130 130
A
década de 80 marcou o início de uma fase de profundas transformações na música erudita brasileira que ainda se encontram em pleno desenvolvimento. Neste momento em que surge toda uma nova geração de compositores, encontramos ainda alguns dos mais importantes nomes da música erudita brasileira deste século no auge de suas produções. Outros que foram radicais transformadores nos anos 60 e 70 praticamente abandonam a composição na década de 80. Os históricos nomes de Francisco Mignone (1897-1986), Camargo Guarnieri (1907-1993), Cláudio Santoro (1919-1989), Guerra-Peixe (1914-1993) e Radamés Gnattali (1907-1988) estão associados a uma produção musical viva e fiel a seus credos. As vanguardas que tanto combateram as estéticas destes compositores nas décadas anteriores, depuseram as armas diante da convicção e reputação dos decanos. Isto não quer dizer que estes compositores mais velhos escrevessem dentro de uma mesma estética, mas que todos eles continuavam a produzir incessantemente, ao contrário dos mais novos. Guerra Peixe e Camargo Guarnieri foram também importantes mestres e deixaram uma quantidade grande de discípulos. Dos de Guarnieri, podemos destacar Osvaldo Lacerda (1927), Sérgio Vasconcelos Correia (1934) e Almeida Prado (1943). Lacerda é muito prolífico. Mantendo-se fiel aos cânones nacionalistas, goza ainda de algum prestígio especialmente nas escolas de música. A obra de Sérgio Vasconcelos Correia demonstra algumas tentativas de avanço sobre terrenos mais ousados, como podemos perceber na composição Potyron (1970), para piano e percussão. De Guerra-Peixe, talvez os discípulos mais importantes tenham sido Guilherme Bauer e Ernani Aguiar, dos quais falaremos mais adiante. De todos os compositores acima mencionados, nenhum foi mais prolífico, intenso e atuante que Cláudio Santoro. Porém, sua obra tem sido muito mais tocada na Europa que no Brasil. De qualquer maneira, ele teve um papel importante dentro da Universidade de Brasília e no desenvolvimento da vida musical daquela cidade. As universidades públicas têm sido o espaço que, de fato, permaneceu aberto à criação musical no Brasil
nestes últimos decênios. Nestas, onde quase todos os compositores lecionaram ou ainda lecionam, é que surgiram alguns grupos camerísticos esporádicos ou mesmo alguns intérpretes de alto nível interessados na produção erudita nacional. Surgem, também, vários festivais de música contemporânea em várias regiões do Brasil. Percebe-se uma clara expansão da atividade. Rio e São Paulo deixam de ser redutos exclusivos. Outras capitais, como Salvador, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre e Curitiba, começam a se impor como centros alternativos de referência a partir de suas universidades federais na década de 80. Muitos dos “vanguardistas” das décadas de 60 e 70, como Aylton Escobar, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Luís Carlos Vinholes e Jaceguay Lins, entre outros, diminuirão ou cessarão suas produções. Alguns por insatisfação com a pouca qualidade do meio musical brasileiro, outros por opção política, e outros ainda, por desacordo com os caminhos estéticos da atualidade. O movimento de ruptura mais conseqüente que aconteceu na segunda metade do séc.XX no Brasil foi, sem dúvida, o “Manifesto Música Nova”, assinado em São Paulo em 1962 por vários músicos e intelectuais, entre eles Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Damiano Cozzella, Gilberto Mendes (1922), Willy Correa de Oliveira (1938) e Rogério Duprat. Dos compositores deste grupo apenas Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira destacaram-se como criadores eruditos de maior amplitude. Ambos estiveram ligados à Universidade de São Paulo. Os compositores deste grupo foram freqüentadores dos festivais de Darmstadt e Donaueschingen, na Alemanha, na década de 60. Conviveram com Boulez, Stockhausen, Nono, Ligeti e, principalmente, com John Cage. Foi seguindo, em parte, as idéias deste último compositor que desenvolveram um discurso de ruptura com o nacionalismo estanque e posicionaram-se numa “vanguarda” independente. Deste grupo, somente Gilberto Mendes continuaria na ativa, não somente produzindo, mas também dirigindo o festival de música contemporânea mais antigo do país, o “Festival Música Nova de Santos”, sua cidade natal. Sua música é permeada por um humor muito crítico. Vários 131
elementos da sociedade de consumo são destilados pelo compositor, especialmente os “jingles” comerciais. Um compositor relativamente independente desta geração em São Paulo é Mário Ficarelli (1937). Também professor da USP, Ficarelli é autor de uma obra não muito extensa, porém de forte expressão. Uma das composições de maior impacto da década de 80 foi sua obra Transfigurationis, de 81. É autor de 3 sinfonias onde podemos perceber uma preferência pelos modelos sinfônicos do finlandês Jean Sibelius. Outro compositor paulista ativo também desde a década de 70 é José Antônio de Almeida Prado (1943). Durante grande parte de sua vida esteve vinculado ao departamento de música da Universidade de Campinas. Este compositor foi um dos primeiros brasileiros desta geração a conseguir uma reputação internacional permanente. Sua música foi muito influenciada por seus mestres Olivier Messiaen e Camargo Guarnieri. Sua produção é gigantesca, incluindo mais de 500 obras para piano solo além de música de câmera, orquestral, vocal e dramática. Voltando ao Rio e à Escola de Música da UFRJ, Ronaldo Miranda (1948), Ricardo Tacuchian (1939), David Korenchendler (1948) e Marisa Resende (1944) são os principais nomes de compositores desta geração que atingem a maturidade nos anos 80. Todos com formação acadêmica muito semelhante. Tacuchian e Marisa Resende realizaram cursos de doutoramento nos EUA. Ronaldo Miranda, que na década de 70 escreveu obras experimentais de grande importância, como Trajetórias, para soprano e conjunto de câmera, vem se expressando num discurso acadêmico intencional. Da década de 80 para cá, sua linguagem tornou-se mais acessível e romântica. No caso de David Korenchendler, encontramos uma inquietação que oscila entre este romantismo tradicional alemão e um uso mais livre da linguagem. Há neste compositor uma atração pelo jazz, pela música de Erik Satie e por elementos da cultura judaica. Toda sua obra apresenta uma construção formal precisa, muito embora ele não se preocupe com qualquer fidelidade estilística. De sua intensa e constante produção destacamos a Sinfonia de nº 3 Salmos – Tehilim, para coro, solistas, 2 violões e pequena orquestra. Ricardo Tacuchian qualifica sua
132
música de pós-moderna. Há também em sua obra, uma questão ideológica. Não são raras as criações que denunciam a miséria e as desigualdades sociais. De sua produção mais recente destacamos a Cantata de Natal, Hayastan e Terra Aberta, sobre poema de D. Pedro Casaldáliga. Este compositor desenvolveu uma técnica própria a qual denominou de sistema “T”. Marisa Resende desenvolveu um intenso trabalho junto à pós-graduação em composição na UFRJ, revelando uma série de jovens compositores. Sua obra é pequena e não se prende a qualquer tendência estética pré-determinada. Cidade com um maior número de instituições de nível superior com cursos de música no país e de instituições estatais dedicadas à música, o Rio de Janeiro tem atraído um grande número de profissionais da música através dos tempos. Outros compositores, de certa maneira independentes desta geração que lá atuam, são Edino Krieger (1928), Ernani Aguiar (1950), Guilherme Bauer (1940) e os polêmicos H. J. Koellreutter (1917-2005) e Marlos Nobre (1939). Edino Krieger, catarinense de origem, é decano dos compositores atuantes no Rio. Dividiu sua carreira de compositor com a de administrador. Durante vários anos foi diretor de Música da FUNARTE. Sua carreira criativa, em muitos momentos ficou em segundo plano. Muitas de suas obras mais recentes causam-nos a impressão de que foram escritas muito rapidamente. O compositor oscilou entre vários estilos durante sua longa trajetória. Podemos destacar de sua produção recente as obras Sonâncias II (1981), para violino e piano; Três Imagens de Nova Friburgo (1988), para orquestra de cordas e cravo; e Te Deum Puerorum Brasiliae (1997), para coro infantil, coro juvenil, coro gregoriano, orquestra de metais e percussão. Atualmente, é presidente da Academia Brasileira de Música e Diretor do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Outro compositor que ainda segue uma linha nacionalista neoclássica é Ernani Aguiar. Discípulo de Guerra-Peixe, tem uma produção já bem vasta. Escreve numa linguagem neoclássica simples e direta, o que faz com que sua música seja freqüentemente executada
Guilherme Bauer ao lado do quadro inspirado na obra do compositor e intitulado Trêmolo, de Ana Maria Bauer. Acrílico sobre tela. COLEÇÃO PARTICULAR – GUILHERME BAUER
em várias partes do país e do exterior. O mais importante discípulo de Guerra-Peixe é Guilherme Bauer. De produção reduzida e muito conseqüente, Bauer já foi premiado em vários concursos. Vem desenvolvendo um estilo próprio a partir de uma sintaxe derivada de uma estética nacionalista. Sua música instrumental é concisa e equilibrada. Nos últimos 20 anos, escreveu, entre outras obras, 2 quartetos de cordas (1983 e 1997), um trio para violino, violoncelo e piano (1980), Cadências (1982) para violino e orquestra, as Sugestões de Inúbias para 2 flautas (1991), Reflexos (1999) para flauta, violoncelo e piano, e Partita Brasileira (1994/2001) para violino solo. Foi recentemente produtor artístico de duas importantes séries de concertos e gravações em CD de música brasileira: o selo “RioArte Digital” e a série “Estréias Brasileiras”. Marlos Nobre já esteve muito em voga junto às várias entidades musicais do país e no exterior, tendo inclusive presidido algumas delas. Seu prestígio, no entanto, vem diminuindo nos últimos anos.
Ele tem tido obras encomendadas por algumas entidades internacionais. Hans Joachim Koellreutter, por sua vez, desempenhou um importante trabalho pedagógico em várias regiões do país. Se por um lado, ele foi responsável pela iniciação de vários jovens músicos nos “mistérios” da música do século XX, por outro, suas idéias, vistas como muito originais pelos seus seguidores, são muitas vezes compilações de vários autores e compositores daquele século. Este músico alemão, radicado no Brasil há mais de meio século, já esteve no centro de várias polêmicas. Na década de 50, foi alvo de ataques violentos por parte de compositores nacionalistas conservadores, liderados por Camargo Guarnieri. Esteve fora do Brasil por um longo período (1962/75), quando viveu na Índia e no Japão, a serviço do governo alemão. Figura carismática numa época onde os debates apaixonantes já perdiam lugar, fez-se “mestre” de muitos já sedentos por alguma informação do mundo exterior. Havia uma razão óbvia para isto: a grande maioria dos velhos compositores não era de grandes erudições acadêmicas. Quase todos vinham de uma formação de instrumentistas nos padrões oitocentistas. Muitos viam com insegurança as mudanças recentes que vinham do exterior. Pensar a música como conceito cultural, ou algo diferente de fazer instrumentos tocarem ou vozes cantarem, era talvez uma coisa por demais abstrata para aqueles que estavam preocupados somente em fazer uma arte que pudesse ser identificada com a sua origem nacional. Neste aspecto, a figura de Koellreutter foi fundamental para aqueles que não tinham tido a oportunidade de sair do país para estudar, ou simplesmente ver diferentes maneiras de pensar. Poucos compositores brasileiros têm conseguido um maior destaque internacional. Jorge Antunes (1942) talvez seja aquele que mais tenha tido oportunidades fora do país nos últimos anos. Atuante em Brasília, onde foi professor da UnB, e natural do Rio, Jorge Antunes obteve sua formação tanto na área da física quanto da música. Foi o primeiro compositor brasileiro a dedicar-se mais intensamente à música eletroacústica. Suas obras seguem uma linha mais livre. É um compositor coerente do ponto de vista da sintaxe 133
musical e sempre defendeu o uso de uma notação especial para a música nova. Esta defesa está baseada em uma corrente internacional muito em voga nos anos 70. Amaral Vieira (1952) é um compositor e pianista atuante em São Paulo. Sua música apresenta uma linguagem de negação de todas as estéticas do séc. XX, muito apreciada em círculos mais conservadores. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea até 2002. Situação semelhante é a do compositor carioca João Guilherme Ripper (1959), que foi Diretor da Escola de Música da UFRJ até 2004. Jocy de Oliveira (1936), natural de Curitiba, vive no Rio e tem sido uma grande divulgadora da música contemporânea no Brasil. Exímia pianista, gravou todo o “Catalogue des Oiseaux”, de Messiaen, com a aprovação do compositor. Como criadora, sua música tem um forte apelo cênico. Já produziu algumas “óperas” onde elementos improvisatórios se misturam a sons eletrônicos. Sua produção é uma demonstração de que não é o conservadorismo acadêmico que atrai o público. O período em questão também apresenta uma novidade histórica importante: a descentralização definitiva da produção musical. Embora Rio de Janeiro e São Paulo continuem a ser as cidades mais importantes do país, outros centros vão despontando gradualmente. Em Salvador, desde finais da década de 50, há um movimento renovador ligado à arte contemporânea e às raízes afro-brasileiras. A partir de 1969, quando aconteceu o 1º Festival de Música da Guanabara, um grupo de compositores baianos chamava a atenção. Eles pareciam ter conseguido fazer uma conciliação entre a cultura popular baiana e a música contemporânea de tradição ocidental. Nos últimos 20 anos, este grupo diminuiu muito sua produção e parece ter perdido a capacidade de renovação. Os compositores mais importantes deste movimento foram o suiço-brasileiro Ernst Widmer (1927-1990) e Lindembergue Cardoso (1938-1989). Widmer foi o iniciador de tudo. Foi o mestre. Chegou à Bahia com menos de 30 anos e envolveu-se com um mundo colorido e sincrético. Sua produção foi enorme e ininterrupta. Inicialmente, procurou fundir elementos onde predominava de uma certa forma a linguagem do
134
Harry-Crowl. Aethra III. Goldberg Edições Musicais. Porto Alegre, 2001. COLEÇÃO PARTICULAR – HARRY CROWL
compositor alemão Paul Hindemith com a aleatoriedade controlada da escola Polonesa dos anos 60. Posteriormente, seu estilo foi transformando-se em dois gêneros bem diferenciados. Em suas 3 sinfonias, utilizou material folclórico abundante da região do rio São Francisco, no interior da Bahia. Sua última composição foi uma ópera sobre Aleijadinho, que estava escrevendo para a Bolsa de Criação VITAE, de São Paulo. Infelizmente, faleceu precocemente numa viagem à sua terra natal, a Suíça, onde fora tratar da criação da Fundação Ernst Widmer, que continua a divulgar sua obra. Com isto, a ópera ficou incompleta faltando o terceiro ato. O discípulo mais notável de Widmer foi, sem dúvida, Lindembergue Cardoso. Este compositor tinha uma incrível facilidade para escrever música. Fazia-o em qualquer lugar e a qualquer momento. Estava sempre querendo terminar alguma coisa para começar outra. Nas décadas anteriores escreveu obras notáveis como A Procissão das Carpideiras, de 69, para vozes femininas e orquestra, Reflexões II, de 74, para orquestra, Sedimentos, de 72,
para quarteto de cordas e Réquiem para o Sol, de 76, para conjunto de câmera. Fernando Cerqueira (1941) é também um importante compositor do grupo baiano. Sua obra, bem menos numerosa que a de Lindembergue Cardoso, foi num período mais profunda e refletida. Em 1970, sua Heterofonia do Tempo ganhou um prêmio do Festival da Guanabara. Na década de 70 produziu obras significativas como Quanta e Parábola. Sua obra de maior impacto nos anos 80 foi a peça Expressões Cibernéticas, para soprano e conjunto de percussão, sobre textos de Haroldo e Augusto de Campos. Dois jovens compositores baianos vêm se destacando apesar da diminuição da atividade musical erudita no estado. São eles Paulo Costa Lima (1954) e Wellington Gomes (1960). Ambos vêm tentando achar um caminho que contemple uma retórica musical onde o sincretismo cultural e uma sólida técnica composicional estejam presentes. A peça Übábá, o que diria Bach, para orquestra de câmera, é um ótimo exemplo de sua linguagem. Wellington Gomes vem se afirmando como um dos mais importantes compositores da geração que surge nos anos 80. Sua Fantasia para violoncelo e orquestra de câmara, de 1992, é uma peça que demonstra uma técnica refinada. Todos estes compositores estão ou estiveram ligados ao departamento de música da UFBA, onde são professores de carreira. Situação diferente ocorre no Rio Grande do Sul. Este estado é o único além de São Paulo, que possui mais de um centro produtor de música de concerto. Além da capital Porto Alegre, que conta com uma boa orquestra sinfônica para os padrões brasileiros e mais 4 orquestras de cordas, Santa Maria mantém uma boa universidade com um importante departamento de música. Além das duas universidades federais (UFRGS e UFSM), há no Rio Grande do Sul uma tradição musical recente bem mais forte que na maioria dos estados brasileiros. Alguns importantes compositores brasileiros eram originários do Rio Grande. O mais famoso sem dúvida, foi Radamés Gnattali. Outros preferiram continuar atuando no estado como foi o caso de Armando Albuquerque (1901-1986) e Bruno Kiefer (1923-1987). Armando Albuquerque foi um
compositor muito original e produziu algumas obras muito curiosas por suas influências do jazz e da música de Erik Satie, na década de 20. Sua produção foi muito reduzida e ficou basicamente confinada ao piano, com poucos vôos noutros gêneros. Foi um professor e produtor de rádio muito atuante. Já Bruno Kiefer foi autor de vasta e variada obra. Interessou-se pelo dodecafonismo de Schönberg e foi praticamente autodidata. Era também formado em Física. Às vezes compunha num estilo quase nacionalista, eventualmente tentando incorporar elementos da técnica dos 12 sons. Foi professor de composição da UFRGS. Alguns compositores gaúchos mais jovens vêm se destacando no cenário nacional e internacional. Frederico Richter (1932), que adotou o apelido de “Frerídio”, é um compositor também muito ativo, tendo escrito música eletroacústica, instrumental e vocal de toda espécie. Recentemente, aposentou-se da Universidade de Santa Maria, onde foi professor e criador da Orquestra Sinfônica. Com uma formação realizada na Universidade MacGill, no Canadá, sua obra não se prende a qualquer estilo definido, sendo ora tonal ora atonal. Ainda no sul do Brasil, o Paraná vem também se destacando no cenário nacional, porém numa proporção muito mais modesta que o Rio Grande do Sul. Os compositores decanos de Curitiba são Henrique de Curitiba (Morozowicz) (1934), atualmente residente em Londrina, e Padre José Penalva (19242002). Henrique tem uma produção pequena. A quase totalidade de sua produção é tonal dentro do espírito da chamada “nova simplicidade”. Estudou na Polônia, terra de seus antepassados e nos EUA, com o tcheco Karel Husa. Por outro lado, Pe. Penalva foi um dos mais refinados e sofisticados compositores brasileiros atuais, especialmente no que diz respeito à música coral e de inspiração religiosa católica tradicional. A maior parte de sua produção constitui-se de obras para coro a capella e obras vocais-sinfônicas. Os oratórios Ágape I, Salmo 90, Os quatro Cavaleiros do Apocalipse e Ágape II são algumas das melhores obras no gênero produzidas no Brasil nos últimos tempos. Outra capital que teve uma quase inigualável atividade de música contemporânea nas décadas de 80 135
e 90, especificamente até 96, foi Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Dos compositores que passaram por lá, o único que obteve um certo destaque nacional foi Eduardo Guimarães Álvares (1959). Hoje radicado em São Paulo, continua seu trabalho voltado para música vocal e teatro musical. Sua obra apresenta características muito originais, sempre com um toque humorístico. O ciclo de canções Pétala Petulância, de 1990, foi composto especialmente para o “Grupo Novo Horizonte de São Paulo”. Concluiu em 2004 a ópera O Enigma de Caim, com o apoio da bolsa VITAE, sobre libreto do dramaturgo Luís Fernando Ramos, professor da ECA/USP. Dois outros compositores, com expressão nacional, também se radicaram em BH, Rufo Herrera (1935), argentino que atuou junto ao grupo da Bahia, e o também argentino, Eduardo Bértola (1939-1996). Rufo Herrera, que foi originalmente músico popular, escreveu vários espetáculos de multimeios, inclusive a ópera Balada para Matraga, inspirada em Roberto Victorio. Guimarães Rosa. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Em 1989, foi inaugurada em Campinas, na biblioteca central da UNICAMP, a sede latino-americana do “CDMC” (Centre de Documentation de la Musique Contemporaine). Dirigido pelo compositor José Augusto Mannis, este centro tem sido de grande utilidade para contatos e intercâmbios nacionais e internacionais. Seu diretor é um importante compositor de música eletroacústica e instrumental, embora a administração do centro não lhe deixe muito tempo para a criação. Quanto aos grupos, vale ressaltar três deles, todos de São Paulo. O “Duo Diálogos”, de percussão, o “PIAP”, orquestra de percussão do Instituto de Artes do Planalto (IAP/UNESP) e, finalmente, o “Grupo Novo Horizonte de São Paulo”, criado em 1989 pelo regente e musicólogo inglês Graham Griffiths. Apesar
136
de todos eles terem tido um excelente trabalho de divulgação de compositores brasileiros, o “Grupo Novo Horizonte” foi o responsável pelo estabelecimento de uma geração bem identificada de compositores. Os nomes de Roberto Victorio (1959), Sílvio Ferraz (1959), Harry Crowl (1958) e Edson Zampronha (1963) têm forte relação com este grupo, que gravou 4 Cds exclusivamente dedicados à música contemporânea brasileira da década de 90. Roberto Victório é carioca de origem. Sua formação como compositor é praticamente autodidata. Fez mestrado em composição na UFRJ, sob a orientação de Marisa Resende. Sua obra é fortemente caracterizada pelo uso de um acentuado pontilhismo e por uma certa inspiração mística. Atualmente, o compositor vive em Cuiabá, Mato Grosso, onde é professor da Universidade Federal. Além de ter praticamente inserido o seu estado de adoção no cenário musical brasileiro, tem realizado uma série de eventos utilizando as características da região, como as grutas, os instrumentos regionais e as culturas indígenas. Paralelamente, criou um grupo de música contemporânea em Cuiabá, o “Grupo Sextante”, que tem apresentado além de suas obras, obras de seus alunos, os primeiros compositores mato-grossenses. Sílvio Ferraz é outro compositor independente com grande projeção inclusive internacional. Sua formação foi realizada na USP e mais tarde concluiu doutoramento no programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Seu estilo é na maioria das vezes bem transparente e original. Há um sutil trabalho de modulação e timbrístico que dá a esta música uma cor muito especial. Outro compositor de destaque do grupo de São Paulo é Edson Zampronha. Suas composições recentes consistem numa série de obras com o título de Modelagem. A produção de Zampronha é aliada a um intenso trabalho de pesquisa dos recursos sonoros e timbrísticos. Há ainda, evidentemente, uma série de outros compositores atuantes no Brasil, alguns certamente com mais destaque que outros. Porém, estes quatro compositores, Victorio, Ferraz, Crowl e Zampronha, têm se destacado pela busca de uma linguagem musical
independente e obtido um razoável reconhecimento no Brasil e no exterior em relação aos demais compositores de sua geração. Poderíamos citar ainda os nomes de Celso Mojola (1960), Flo Menezes (1962) em São Paulo, e de Luiz Carlos Csekö (1955) e Chico Mello (1957) no Rio. Flo(rivaldo) Menezes (Filho) estudou na USP, na Itália e na Alemanha. Sua música envolve processos computacionais e instrumentos acústicos. Promove anualmente um concurso internacional de música eletroacústica. Os outros compositores mencionados dedicam-se principalmente ao teatro musical. Há uma crescente produção de música eletroacústica por computador, especialmente entre compositores mais
jovens. Ainda são poucos os compositores que se dedicam somente a este gênero e que têm a mesma notoriedade daqueles envolvidos com os meios acústicos tradicionais. Podemos citar os nomes dos cariocas Rodolfo Caesar (1950) e Rodrigo Cichelli Veloso (1966) como os mais importantes nesse aspecto. Já Tim Rescala (1961), também carioca, atua intensamente na música eletroacústica, no teatro musical e também tem obtido grande visibilidade com seus trabalhos para a televisão e o teatro tradicional. Sua música quase sempre faz paródias do cotidiano. Tato Taborda (1960), que é curitibano e também atua no Rio de Janeiro, tem se dedicado igualmente tanto ao teatro musical quanto à música eletroacústica.
DISCOGRAFIA
GILBERTO MENDES Qualquer Música Saudades do Parque Balneário Hotel Claro Clarone Ulysses em Copacabana Um Estudo? Longhorn Trio Motetos à Feição de Lobo de Mesquita The Sentimental Gentleman Revisited The Spectra Ensemble – Philip Rathé VOX TEMPORIS CD92 030 – Bélgica 16 Peças para piano Für Annette Pour Eliane 5 Prelúdios Terão Chebl, piano Rimsky Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo Lidia Bazarian, piano LAMI 003 – Brasil ERNST WIDMER A Última Flor Altenberg Trio VANGUARD CLASSICS 99135 – Holanda – 1996 Marujadas, Reisado e Toada do Médio São Francisco Divertimento VI É Doce Morrer no Mar Concerto para Fagote, Orquestra de Cordas e Percussão
Toadas dos Remeiros do Rio São Francisco Música para Orquestra de Câmara Regência: Eduardo Torres Cláudia Ribeiro Sales, fagote PAULUS 004512 – Brasil – 1999 Ondina Bahia Ensemble PRÊMIO COPENE DE CULTURA E ARTE, Salvador – Brasil – 1997 Lindembergue Cardoso Soterofonia Minisuite O Vôo do Colibri Procissão das Carpideiras Oniçá-Orê Vários intérpretes PRÊMIO COPENE CULTURA E ARTE 2001, Salvador – Brasil Monódica Bahia Ensemble PRÊMIO COPENE DE CULTURA E ARTE, Salvador – Brasil – 1997 ALMEIDA PRADO Cartas Celestes I Luís Senise, piano O Rosário de Medjugorjie Elizabete Aparecida, piano Sonata nº 3 para Violino e Piano Constança Almeida Prado, violino Helenice Audi, piano ILUSTRARE MR0423 – Brasil Modinha nº 1 Trem de Ferro A Minha Voz é Nobre
Rosamor Lembranças do Coração Três Canções Três Episódios Animais Portrait de Nadia Boulanger Livro Brasileiro – II Caderno Victoria Kerbauy, soprano Almeida Prado, piano SPY ARTES DIGITAIS MS43-0700 Maranduba Grupo de Percussão do Instituto de Artes da UNESP GRUPO PIAP 199.004.470 - Brasil Fantasia para Violino e Orquestra Constança Audi Almeida Prado, violino Orquestra Sinfônica Brasileira. Regência, Roberto Tibiriçá RIOARTE DIGITAL 018 - Brasil Oré-Jacytatá, Cartas Celestes nº 8 “O Céu da Bandeira Brasileira” Constança Audi Almeida Prado, violino Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, Brasília Regência, Sílvio Barbato BRASIL 500 ANOS OSTNCD 0102 - Brasil MÁRIO FICARELLI Quinteto para Trompa e Quarteto de Cordas Quinteto para Oboé e Quarteto de Cordas Quinteto para Dois Violinos, Duas Violas e violoncelo
André Ficarelli, trompa Alexandre Ficarelli, oboé Horácio Schaefer, viola Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo LAMI – 004 Brasil – 2004 Tempestade Óssea Grupo de Percussão do Instituto de Artes da UNESP GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil MARLOS NOBRE In Memoriam Mosaico Convergências Biosfera O Canto Multiplicado Ukrinmakrinkrin Rythmetron Divertimento Concerto Breve Variações Rítmicas Música Nova Philharmonia Música Nova Ensemble Regência: Marlos Nobre Ensemble de Percussion de Geneve Ensemble Bartok Maria Lucia Godoy, soprano Amalia Bazan, soprano Luiz de Moura Castro, piano Marlos Nobre, piano LEMAN CLASSICS – LC44100/ 2CD set – Suíça RICARDO TACUCHIAN Terra Aberta
137
D I S C O G R A F I A (continuação)
Ruth Staerke, soprano Orquestra Sinfônica Brasileira. Regência, Roberto Tibiriçá RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil Estruturas Simbólicas Estruturas Gêmeas Estruturas Primitivas Estruturas Obstinadas Estruturas Verdes Estruturas Divergentes Vários Intérpretes RIOARTE DIGITAL 022 − Brasil RONALDO MIRANDA Suite Festiva Orquestra Sinfônica Brasileira Regência, Roberto Tibiriçá RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil Tango Lúdica I Variações Sérias Três Canções Simples Prólogo, Discurso e Reflexão Trajetória Appassionata Alternâncias Vários intérpretes RIOARTE DIGITAL − 020 − Brasil Sinfonia 2000 Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, Brasília Regência, Sílvio Barbato BRASIL 500 ANOS OSTNCD 01 − 02 − Brasil EDINO KRIEGER Te Deum Puerorum Brasiliae Coro Infantil do Rio de Janeiro (mestre de coro: Elza Lakschevitz) Polifonia Carioca (mestre do coro: Eduardo Lakschevitz) Coro Gregoriano do Rio de Janeiro, direção: Dom Féliz Ferrá, Ordem de São Bento Orquestra Sinfônica Brasileira Regência, Roberto Tibiriçá RIOARTE DIGITAL 018 − Brasil Sinfonia Terra Brasilis Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, Brasília Regência, Sílvio Barbato BRASIL 500 ANOS OSTNCD 0102 – Brasil Suite para Cordas Orquestra de Câmara da Rádio MEC. Regência, Mário Tavares Divertimento para Cordas Orquestra de Câmara da Rádio
138
MEC. Regência, Roberto Schnorrenberg Ludus Symphonicus Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC. Regência: Rinaldo Rossi Estro Armônico Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC Regência: Edino Krieger Canticum Naturale Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC Regência: Eleazar de Carvalho Maria Lúcia Godoy, soprano RIOARTE DIGITAL 110001 − Brasil Suite para Cordas Orquestra de Câmara da Cidade de Curitiba Fundação Cultural de Curitiba ETU102 − Brasil − 2000 Três Imagens de Nova Friburgo Orquestra de Câmara de Blumenau Regência: Norton Morozowicz Martina Graf, piano COMEP CD6470-0 − Brasil – 1991 GUILHERME BAUER Sugestões de Inúbias Trio para Violino, Violoncelo e Piano Partita Brasileira Duas Peças Brasileiras Quarteto de cordas nº 2 Cadências para Violino e Orquestra Eduardo Monteiro e Alexandre Eisenberg, flautas Trio Fibonacci (Montreal, Canadá) Quarteto Moyzes (Eslováquia) Andreas Pozlberger, violoncelo Sven Birch, piano Erich Leninger, violino Orquestra Sinfônica Brasileira Regência: Henrique Morelembaum RIOARTE DIGITAL − 031 − Brasil – 2002 Quarteto de Cordas nº 1 “Petrópolis” Quarteto de Cordas nº 2 Quarteto Moyzes PAULUS – 004000 – Brasil – 1998 JOCY DE OLIVEIRA As malibrans ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA – Brasil Ilud Tempus RIOARTE DIGITAL/ ABM – Brasil DAWID KORENCHENDLER Sinfonia nº 3 (Psalmi-Tehilim) Coro Canto em Canto
Maria Haro e Nicolas de Souza Barros, violões Orquestra Sinfônica Brasileira Regência, Roberto Tibiriçá RIOARTE DIGITAL 018 – Brasil Abertura Orquestra Sinfonia Cultura da RTV Cultura de São Paulo. Regência: Lutero Rodrigues Memórias (Variações sobre o Bambalalão) Dawid Korenchendler, piano Sonata nº 6 “Sonata do Jubileu” Ruth Serrão, piano “Ballade des Pendus” Coro de Câmara “Sacra Vox” RIOARTE DIGITAL − 023 – Brasil MARISA REZENDE Volante Sintagma Variações Elos Ressonâncias Mutações Contrastes Vórtice Cismas Cássia Carrascoza, flauta Luís Eugênio Montanha, clarineta Dimos Goudarolis, violoncelo Ana Valéria Poles, contrabaixo Lídia Bazarian, piano Marisa Rezende, piano Marcelo Fagerlande, cravo Carlos Tarcha, percussão Eduardo Gianesella, percussão Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo LAMI − 005 Brasil – 2004 JORGE ANTUNES Sinfonia em cinco movimentos Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro, Brasília. Regência, Sílvio Barbato BRASIL 500 ANOS OSTNCD 0102 − Brasil – 2001 Flautaualf Trio em lá pis Source Vivaldia MCMLXXV Vários Intérpretes EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CD 350010 − 2002 − Brasil FLÁVIO OLIVEIRA Tudo Muda
Uruguay Mistérios Aos que partiram Ao homem Chê To a certain cantatrice Ein musikalisher brief Peça para piano Round about Debussy ...Quando Olhos e Mãos... Movimentos:Variações Intradução de Ravel Round about Debussy (2a versão) Nênia Vários intérpretes FUNPROARTE BP 21660 – Brasil BRUNO KIEFER Poemas da Terra Música sem incidentes Música pra gente miúda Ventos incertos Querência Quarteto de Flautas Doces “Poemas da Terra” Dunia Elias Carneiro, piano Fredi Gerling, violino Márcio de Sousa, violão FUNPROARTE Poet 100 – Brasil Sonata I Lamentos da terra Duas Peças Sérias Tríptico Sonata II Seis Pequenos Quadros Toccata Ares de Moleque Em poucas Notas Alternâncias Poema para ti Cristina Capparelli, piano FUNPROARTE BK001 – Brasil Música sem Incidentes Terra Sofrida Canção para uma valsa lenta Momento de ternura Música sem nome Situação Sons perdidos Canção da garoa Quiçá... Brincando Faz de conta... Márcio de Souza e Flávia Domingues Alves, violões Ademir Schmidt, flauta transversal Eliana Van Huber, flautas doces Coro Porto Alegre
D I S C O G R A F I A (continuação)
Cristiano Hansen, narração FUNPROARTE MS011969 − Brasil ARMANDO ALBUQUERQUE Suite Bárbara Infantil Outono Uma Idéia de Café Motivação Tocata Suite (Infantil) Evocação de Augusto Meyer Sonho III Peça para piano 1964 Celso Loureiro Chaves, piano Independente – Celso Loureiro Chaves, Porto Alegre – Brasil ANTÔNIO CARLOS BORGES CUNHA Ancient Rhythm Pedra Mística Fonocromia InstalaSom SONOR Ensemble, direção: Harvey Sollberger Orquestra Sinfônica de Porto Alegre Coral Sinfônico da OSPA e solistas Regência: Manfred Schmiedt Coral da UFRGS Regência: Cláudio Ribeiro Grupo InstalaSom Regência: Antônio Carlos Borges Cunha UFRGS 199.009.991 – Brasil PE. JOSÉ PENALVA Ágape II Le Regard de Dieu Casinha Pequenina Cantiga por Luciana Carinhoso Mini Suite: Mania das Pessoas Mini Suite: Arlequim Madrigal Vocale e convidados TRILHAS URBANAS ETU124AA0001000 – Brasil
FLO MENEZES On the other hand... Grupo de Percussão do Instituto de Artes da UNESP GRUPO PIAP 199.004.470 – Brasil Parcours de l’Éntité Contextures I (Hommage à Berio) Contesture III PAN; Laceramento della Parola Profils écartelés Words in Transgress MÚSICA MAXIMALISTA VOL.1 PANAROMA 199.000.926 – Brasil − 1996 SÍLVIO FERRAZ Conferência – versão para instrumentos e fita Conferência – versão instrumental Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Regência: Graham Griffiths VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI – Brasil – 1996 No Encalço do Boi Luís Eugênio Montanha, clarone Carlos Tarcha, percussão LAMI 002 – Brasil − 2004 EDSON ZAMPRONHA Modelagem VII Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Regência: Graham Griffiths VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI – Brasil – 1996 Modelagem XII Modelagem II O Crescimento da Árvore Sobre a Montanha Modelagem III Mármore Modelagem VIII Fragmentation Orquestra Sinfonia Cultura Regência: Lutero Rodrigues Beatriz Balzi, piano Celina Charlier, flauta Eduardo Gianesella, percussão ANNABLUME – 199.016.320 –
Brasil Modelagem XIII Lídia Bazarian, piano Eduardo Gianesella, percussão LAMI 002 – Brasil - 2004 ROBERTO VICTÓRIO Codex Troano Heptaparaparshinokh Cruzar e Bifurcações Archeus Grupo de Percussão da UNES. Regência: John Boudler Coro de Câmara da Pró-Arte. Regência: Carlos Alberto Figueiredo Grupo Música Nova da UFRJ. Regência: Roberto Victório Grupo Metal Transformação Rio de Janeiro. Regência: Zdenek Svab Rose Vic, soprano Ronaldo Victório, tenor Marcelo Coutinho, barítono ROBERTO VICTORIO RV001 – Brasil – 1996 Planalto Central Sentinelas de Pedra Grupo Sextante ROBERTO VICTORIO RV 002 – Brasil PAULO COSTA LIMA Ibejis Apanhe o jegue Pega essa nêga e chêra Imikaiá Ponteio Atotô do L’homme armé Saruê de dois Bahia Ensemble. Regência: Piero Bastianelli PRÊMIO COPENE DE CULTURA E ARTE, Salvador – Brasil – 1997 WELLINGTON GOMES Fantasia Reminiscências Frevinho
Bahia Ensemble Regência: Piero Bastianelli PRÊMIO COPENE DE CULTURA E ARTE, Salvador – Brasil – 1997 HARRY CROWL Finismundo Simone Foltran, soprano Grupo Novo Horizonte de São Paulo. Regência: Graham Griffiths VIVAVOZ/EDUC – ED283MDI – Brasil – 1996 Revoada Helle Kristensen, flauta doce PAULA CD 97 – Dinamarca – 1996 Na Perfurada Luz, em Plano Austero (Quarteto de cordas nº 1) Quarteto Moyzes PAULUS 004000 – Brasil – 1998 Sonata I Canto para violino solo Aluminium Sonata Assimetrias Sonata II Austrais – 4 Canções Concerto para Clarone, Percussão e Piano Concerto para Piano e Orquestra No Silêncio das Noites Estreladas Leilah Paiva, piano Carlos Assis, piano Atli Ellendersen, violino Mário da Silva, violão Ana Toledo, soprano Otinilo Pacheco, clarone Grupo Novo Horizonte de São Paulo Orquestra Sinfônica do Paraná Regência: Roberto Duarte PIAP, Grupo de Percussão da Universidade Estadual Paulista UFPR/SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DO PARANÁ CD 3584 1-2 Brasil – 2002
HARRY CROWL Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná UFPR. Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedada Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).
139
ENTREVISTA
MÚSICA DE CONCERTO NA TERRA DO SAMBA PRODUÇÃO E PERFORMANCE
Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea, Harry Crowl é um compositor cujo catálogo beira 80 obras, contabilizando execuções em uma plêiade de países que vai do Chile às Ilhas Faroe, passando por Alemanha, França, Reino Unido, Holanda e Suécia, entre muitos outros, tendo atraído a atenção de grupos como o Quarteto Moyzes, da Eslováquia, o Ensemble Nord, da Dinamarca, o George Crumb Trio, da Áustria, e o Trio Fibonacci, do Canadá. 140 140
Além disso, o autor, nascido em 1958, vem atuando consistentemente como musicólogo, tendo sido responsável pela descoberta e restauração de várias partituras de compositores brasileiros do período colonial. Harry Crowl é ainda produtor de programas da rádio Paraná Educativa, professor da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e diretor artístico da Orquestra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Como se vê, uma atuação multifacetada, que vai
Harry-Crowl FOTO: SIMONE TRISTÃO
141 141
A música brasileira ainda é muito pouco conhecida no exterior de um modo geral. Porém, quase sempre provoca surpresas. Causa espanto saber que existe uma produção ininterrupta de música erudita no nosso país desde o século XVIII até os dias de hoje.
desde a pesquisa até a criação de música de concerto, passando por seu ensino, performance e difusão (maiores detalhes podem ser obtidos em http://sites.uol.com.br/harrycrowl). Pela representatividade de seu trabalho como compositor, bem como pelo caráter abrangente de suas atividades, Harry Crowl foi escolhido por Textos do Brasil para dar um depoimento sobre os desafios e perspectivas de escrever, investigar, ensinar, tocar e difundir música “clássica” em um país dominado, reconhecido e aclamado pelo vigor de sua música popular.
IRINEU FRANCO PERPÉTUO: É evidente a predominância de difusão da música popular sobre a música de concerto no mundo inteiro. No Brasil, a música “clássica” parece estar ainda mais deslocada, porque a música popular, além da ampla aceitação do público, goza de prestígio junto à intelectualidade. Qual a real inserção da música erudita em geral na sociedade brasileira? Como aumentá-la? Toca-se música de concerto no Brasil? O quanto se toca? E o quanto se toca de música escrita por autores brasileiros? HARRY CROWL: A difusão da música no Brasil está diretamente ligada ao lado puramente comercial. Tanto a música popular de qualidade quanto a música de concerto estão relegadas a um segundo plano. No caso da música de concerto, creio que há um reflexo direto da inexistência até o momento, de políticas culturais mais direcionadas no país. Nos últimos anos, pode-se perceber um certo aumento de orquestras em diversas
142
regiões. Porém, ainda carecemos de políticas que estimulem a formação de pequenos grupos estáveis, como quartetos de cordas, quintetos de sopro, grupos de música contemporânea, etc. A resposta do público a este tipo de música tem sido cada vez mais favorável. A única atitude que pode aumentar o público é a constância de concertos e o aumento da programação do repertório nas rádios oficiais e comerciais. Toca-se música de concerto no Brasil com certa freqüência, porém com pouca variedade de repertório. Há uma certa insistência num repetitivo repertório clássicoromântico europeu. Música de compositores brasileiros só é tocada quando há um trabalho de divulgação feito pelos próprios compositores, associados ao eventual espírito magnânimo dos músicos e regentes. É claro que há exceções. Há intérpretes que primam por fazer somente o repertório brasileiro. IFP: O que é a SBMC? Como ela atua? Quais suas maiores dificuldades e projetos? Qual a real inserção internacional da música erudita brasileira, quer antiga, quer contemporânea? Como ampliá-la? CROWL: A Sociedade Brasileira de Música Contemporânea foi criada com o objetivo de divulgar e promover a música de concerto de compositores brasileiros no exterior e também, divulgar a música contemporânea internacional no Brasil. Todas as ações realizadas até hoje pela SBMC foram iniciativas vinculadas aos seus dirigentes, com exceção da indicação de obras para os “Dias Mundiais da Música” (World Music Days). Este evento acontece desde a década de 1920, e desde a década de 70, a SBMC vem indicando obras brasileiras para o festival. Talvez, este seja o maior evento mundial de música contemporânea. Nele, todos os países afiliados têm direito a pelo menos uma obra executada. Estamos nos esforçando para aumentar a participação do Brasil e da América Latina neste grande evento. Em 2002, o festival aconteceu em Hong Kong e teve a obra Circunsonantis, para quarteto de cordas, de Eli-Eri de Moura, da Paraíba, apresentada. Em 2003, já na Eslovênia, onde estive presente, foi a vez da obra A Vision of Sulis, para conjunto de câmera, do carioca Marcos Lucas. Em 2004, o festival aconteceu na Suíça
e, em 2005, na Croácia. O contato com as nossas sociedades irmãs tem sido muito proveitoso. Temos enviado informações e materiais gravados a várias delas, assim como temos recebido muitos CDs principalmente, para os programas de rádio que produzimos em Curitiba divulgando a música atual do Brasil e do mundo. Os primeiros frutos desses contatos começam a aparecer. Em março e abril de 2004, o programa “Geografia dos Sons”, da Rádio Portuguesa, Antena 2, produzido pelo compositor português Luís Tinoco, apresentou oito programas dedicados exclusivamente à música contemporânea brasileira, com material inteiramente fornecido por nós. A música brasileira ainda é muito pouco conhecida no exterior de um modo geral. Porém, quase sempre provoca surpresas. Causa espanto saber que existe uma produção ininterrupta de música erudita no nosso país desde o século XVIII até os dias de hoje. Nos outros países não europeus essa tradição apresenta vácuos. Tanto na América de língua espanhola quanto inglesa, as práticas musicais cultas tendem a ter um grande declínio após a independência dos países. Somente no século XX é que há um renascimento dessa música nos outros países. A SBMC não conta com qualquer subsídio. Os únicos recursos são provenientes do pagamento das anuidades dos associados. Praticamente, todo esse recurso é utilizado para o pagamento da anuidade da ISCM/SIMC (Sociedade Internacional de Música Contemporânea). Se a nossa sociedade tivesse algum subsídio, poderia produzir CDs de divulgação dos nossos compositores e até mesmo eventos. IFP: Você é a favor do ensino musical obrigatório em todas as escolas? Por quê? No que tange ao ensino musical profissionalizante, qual seu estágio atual no Brasil? Houve uma evolução? É possível ter uma boa formação musical profissional no Brasil sem ter que sair do país? CROWL: Claro que sim. Além de desenvolver habilidades básicas como coordenação, concentração e raciocínio abstrato, a música passa a fazer parte efetiva da vida dos cidadãos, permitindo que interajam com mais um riquíssimo aspecto da produção humana. O ensino musical no Brasil está ainda num estágio muito
amador do ponto de vista prático. Algumas escolas particulares oferecem formação musical de acordo com as suas conveniências, mas a maioria dos interessados em estudar música tem que procurar ensino específico. Em grande parte dos cursos superiores de música, principalmente aqueles oferecidos pelas universidades públicas, há cursos preparatórios, pois não há como ter um indivíduo preparado para a formação superior (de música) fora destes cursos. Mesmo em regiões onde há conservatórios desvinculados de universidades, como no estado de São Paulo, o modelo é o mesmo, ou seja, os interessados têm que entrar para um curso fora da escola regular e desenvolver um estudo paralelo até estar mais ou menos apto a freqüentar um curso superior. Os nossos cursos superiores estão diretamente ligados ao prestígio dos professores que atuam nas faculdades. Não conheço nenhuma instituição no Brasil, que ofereça uma boa preparação para todos os instrumentos e igualmente dê uma boa base teórica. Não me parece que tenha havido qualquer evolução. Quando Villa-Lobos criou o método do Canto Orfeônico, durante o Estado-Novo, parecia que um caminho inédito e promissor seria aberto. Havia problemas com este tipo de educação musical, sem dúvida. Villa-Lobos era um intuitivo, e não um teórico. Porém, o que deveria ter sido feito era aperfeiçoar o sistema, e não simplesmente extinguí-lo, como foi feito por uma dessas leis de diretrizes e bases da década de 60. Hoje, ainda é possível se obter uma formação de alto nível sem sair do país. Porém, o custo disto é muito alto. É preciso um esforço hercúleo e uma grande força de vontade para correr atrás de vários professores. Os festivais e oficinas de música que acontecem no país durante os meses de janeiro e julho são uma boa ajuda, mas não são suficientes. A formação nos países mais desenvolvidos nesta área é muito menos penosa. Há no Brasil hoje, uma série de estudos muito importantes realizados através das pós-graduações das universidades públicas sobre a situação do ensino e até mesmo soluções muito bem elaboradas. Porém, falta que estas sejam de fato colocadas em prática. IFP: Qual o estado das orquestras e teatros de ópera no Brasil? Estão concentrados geograficamente ou difundidos?
143
Para que as orquestras no Brasil passem a fazer música brasileira regularmente será necessário um esforço político. Será necessário que os principais interessados pela questão, os compositores, pressionem de alguma forma as instituições que estão por trás das orquestras.
As orquestras estão majoritariamente em crise ou dá para falar em um “renascimento” (ou nascimento) sinfônico no Brasil? Qual o papel dos intérpretes em geral e, especificamente, das orquestras, na difusão da música brasileira, quer no Exterior, quer aqui? Poderia haver um apoio maior das orquestras/teatros aos compositores brasileiros contemporâneos? Como isso funcionaria? CROWL: As orquestras são mantidas por órgãos públicos estaduais ou municipais, ou mesmo universidades federais. Por um lado, estão sempre às voltas com os mesmos problemas do funcionalismo público de um modo geral: salários e estabilidade. Por outro, como não há qualquer política de divulgação de um repertório mais amplo, os programas tendem a ser sempre os mesmos. Em alguns casos, como o da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), um novo paradigma foi implantado. A orquestra vem se pautando pela excelência e pela diversidade do repertório. A Orquestra Petrobrás Pró-Música, no Rio, parece estar seguindo um caminho semelhante. Existem hoje, orquestras espalhadas por todo o país, principalmente nas capitais. Já os teatros de ópera há muito perderam a razão do nome. Não há mais temporadas no Brasil, com exceção do Festival de Ópera de Manaus. Há apenas montagens esporádicas de algumas mesmas óperas tradicionais. Considerando que o Brasil já teve temporadas internacionais ao longo de mais de um século, o retrocesso foi enorme. Do ponto de vista da criação musical, percebe-se nitidamente as conseqüências desta situação. Os compositores mais jovens escrevem cada vez menos para orquestra e raramente escrevem ópera. 144
A música de câmara e com recursos eletroacústicos tende a atraí-los mais. Alguns regentes fazem um bom trabalho de divulgação da música brasileira, de maneira isolada quase sempre. Não há estímulo para que isso aconteça. Neste caso da música para orquestra, não existe no Brasil ainda a figura do compositor-residente, como nas orquestras de grande parte dos países desenvolvidos. Acredito que as orquestras deveriam trabalhar com compositores em caráter permanente, não somente para executar as suas obras, mas também para montar o repertório. Recentemente, em turnê pela Europa, a OSESP apresentou obras de compositores brasileiros. A última vez que isto aconteceu, que eu saiba, foi na década de 70, quando a Orquestra Sinfônica Brasileira fez uma turnê pelos Estados Unidos e pela Europa, inclusive gravando dois discos LP. Creio que já que as orquestras são mantidas com dinheiro público, elas teriam a obrigação de encomendar e fazer obras de compositores brasileiros. Lembro-me de uma história contada pelo compositor português Amílcar Vasques Dias sobre o que fizeram os compositores holandeses para conseguir que as orquestras de seu país tocassem suas obras, especialmente a Concertgebouw. Ele relatou que, em algum momento da década de 70, numa apresentação do balé Quebra-Nozes, os compositores organizaram uma algazarra com brinquedos musicais no meio da platéia. Todas as vezes que o maestro tentava começar a música, um grupo de quase cem pessoas punha-se a fazer um barulho infernal. A confusão acabou com a chegada da polícia, pois o público pagante queria linchar os compositores e seus simpatizantes. Em seguida, todos queriam saber o porquê daquela atitude. A resposta foi simples: “somos compositores, é a nossa profissão, portanto queremos que as orquestras holandesas, que subsistem à custa dos impostos dos cidadãos, toquem a nossa música”. Não quero aqui fazer qualquer proselitismo de arruaças, mas dizer que sem luta não se consegue nada. Para que as orquestras no Brasil passem a fazer música brasileira regularmente será necessário um esforço político. Será necessário que os principais interessados pela questão, os compositores, pressionem de alguma forma as instituições que estão por trás das orquestras.
IFP: Fale um pouco sobre as relações entre suas experiências de compositor e musicólogo, e sobre como uma influencia a outra. CROWL: O meu interesse pela musicologia veio como uma necessidade de conhecer aquilo que havia sido produzido no Brasil em épocas passadas. De uma certa maneira queria buscar modelos para a minha própria criação a partir da observação de procedimentos originais de compositores brasileiros. Acrescento a isso também o fato de sempre ter tido um grande interesse em História de modo geral e na História da Música e das Artes. Quando estudava nos Estados Unidos, na década de 70, tomei conhecimento das vanguardas européias e americanas. Ouvia tudo que podia. Conheci melhor a música do século XX. Cheguei a me identificar com os compositores da Escola de Viena, especialmente Schönberg e com os compositores poloneses atuais, em particular Penderecki e Lutoslawski. Um dia, achei que não tinha nada a ver comigo escrever música como aqueles compositores. Comecei então a ouvir com mais atenção compositores brasileiros, hispano-americanos e alguns norteamericanos. Descobri um mundo novo através da música de Villa-Lobos, que não suportava quando vivia antes no Brasil, por puro preconceito; dos americanos Charles Ives, Charles Ruggles, do argentino Alberto Ginastera, e dos mexicanos Silvestre Revueltas e Carlos Chavez. A partir daí, comecei a pesquisar obsessivamente a música erudita brasileira e a de outros países não-europeus com tradições ocidentais. Como não existia quase nenhuma gravação disponível, especialmente de música de compositores brasileiros, comecei a correr atrás de colecionadores e a gravar em fitas cassete tudo que encontrava. Quando achava também as partituras das obras gravadas, estudava-as a fundo. Fui voltando no tempo histórico até chegar no período colonial. Percebi logo que esta era uma matéria da qual muitos falavam a respeito, mas poucos de fato conheciam alguma coisa. Quase nada havia de gravações ou partituras dessas obras. Interessei-me profundamente pela questão e comecei a estudar tudo que cercava a matéria: História do Brasil na época colonial, Atuação da Igreja Católica no Brasil, Processos de colonização, História das Artes na Colônia, História de Portugal, as Práticas Musicais nos
Países Católicos, etc. Trabalhei com este assunto junto à Universidade Federal de Ouro Preto por mais de 10 anos. Fiz a reconstrução de aproximadamente 20 obras de compositores da época colonial. Acabei encontrando alguns procedimentos em compositores como Lobo de Mesquita, João de Deus de Castro Lobo, Manuel Dias de Oliveira, que diferiam dos modelos europeus mais conhecidos. Havia nesses compositores uma mistura de procedimentos da 1ª metade do século XVIII com o operismo do início do século XIX. Mais tarde, percebi que os portugueses já tinham feito coisa parecida anteriormente, quando misturavam o estilo napolitano com o romano. Como compositor, isto foi para mim uma grande descoberta. Percebi que poderia usar estruturas formais observadas nas obras destes vários compositores e inventar o que quisesse. A primeira obra em que utilizei um modelo antigo foi a Aluminium Sonata (1985) para violino e piano, onde usei como referência a Sonata em Sol maior para piano e violino “obrigado”, do compositor português Francisco Xavier Baptista (morto em 1797). Mais adiante, criei uma obra mais ousada que foi o oratório Memento Mori (1987) para vozes e conjunto de música antiga, sobre o texto “Barrocolagens”, de Affonso Ávila. Nesta composição, utilizei-me da Oratória ao Menino Deus para a Noite de Natal, de Ignácio Parreiras Neves (Vila Rica, 1734?-1794?). Daí em diante, várias foram as obras nas quais parti de “modelos” de música antiga brasileira ou afim. Devo acrescentar, porém, que as referências mais contemporâneas anteriores permaneceram, pois toda a minha obra está construída sobre uma sintaxe atonal livre, derivada do serialismo. O que mais me marcou foi a possibilidade de criar um mundo em labirinto não linear encontrado tanto na música de Villa-Lobos ou Ives, assim como nos compositores coloniais, principalmente nos mineiros. Um discurso musical totalmente avesso a um neo-classicismo racional ou a um neo-romantismo ultra sentimental, ou mesmo um expressionismo exagerado. IFP: É possível falar em uma única linguagem “contemporânea” para a música de concerto, ou estamos em um período em que todas as linguagens são possíveis?
145
Na música popular, é absolutamente natural identificarmos uma música autenticamente brasileira. Mas na música de concerto, para mim, isto sempre teve um “quê” de artificialidade.
Os termos “vanguarda” e “nacionalismo” ainda fazem sentido ou são duas faces de uma moeda já fora de circulação? Existe “brasilidade” em música ? Se existe, o que é isso? Faz sentido cobrar de um compositor que seja “nacional”? Dá para falar em uma tendência hegemônica nacional (ou, até, internacionalmente) “retrô”, de volta a uma música “simples, tonal, acessível”? Como você vê esse tipo de tendência? CROWL: Vivemos uma época de pluralidade absoluta. Falar tanto em “vanguarda” como em “nacionalismo” é muito saudosismo. Há correntes estéticas que predominam em regiões do mundo. Mas isto é muito mutável. A facilidade com a qual as informações viajam hoje em dia faz com que a música de qualquer lugar seja conhecida em qualquer outra parte. O que se percebe é que as linguagens mais elaboradas e herméticas como a “super complexidade”, do Brian Ferneyhough, por exemplo, ou mesmo os remanescentes do serialismo integral, subsistam somente dentro de instituições acadêmicas. O “minimalismo” americano está confinado a uns poucos compositores, porém com forte apelo comercial. Há vários movimentos “neo” alguma coisa. Uns retomando a estética do antigo realismo socialista soviético, como a atual fase de Krysztof Penderecki, outros escrevendo no estilo de Tchaikovski, como alguns colegas nossos aqui no Brasil. Há também um certo ecletismo por parte dos compositores nórdicos e do leste europeu. E, finalmente, há uma escola engraçadinha, ou seja, que vive de fazer piadinhas musicais e que se autodenomina de pós-modernismo holandês e flamengo, além da “nova simplicidade” dos seguidores do italiano Giacinto Scelsi. Em países como os EUA, Alemanha e França encontra-se de tudo,
146
porém nos EUA predominam a criação tonal neoromântica; na Alemanha, talvez predomine um neo-expressionismo remanescente de Schönberg; e, na França, a música espectral. O que mais vem chamando a atenção, porém, é o surgimento cada vez maior de compositores orientais. A grande maioria deles faz música como os ocidentais, mas no caso de alguns japoneses, e do chinês Ju Jian-er, há uma feliz tentativa de combinação das tradições do oriente com o ocidente. Não creio, como a maioria, acho eu, em “brasilidade”. Este termo, aliás, tem forte conotação ideológica. Se não estou enganado, foi amplamente difundido por Plínio Salgado, nos tempos do Integralismo. Na música popular, é absolutamente natural identificarmos uma música autenticamente brasileira. Mas na música de concerto, para mim, isto sempre teve um “quê” de artificialidade. Com exceção de Villa-Lobos, que fez um uso um tanto intuitivo de ritmos e melodias de origem popular, todos os outros compositores nacionalistas o fizeram consciente e calculadamente. A criação musical, hoje em dia, está mais ligada a universos culturais genéricos do que a fronteiras territoriais. Haja vista a diversidade da música dos nossos compositores. IFP: Diz-se que o maior desafio dos compositores, hoje, é a busca de uma linguagem própria. É isso mesmo? Como você encontrou a sua, e como a define? Entrevistas com compositores brasileiros sempre terminam com uma nota triste, com queixas de abandono, de falta de apoio... Contudo, você parece não subscrever esse pessimismo conformista e está sempre trabalhando pela difusão de suas obras. Que caminho você aponta para a novíssima geração de compositores que está surgindo no Brasil? Você acompanha suas obras? Apontaria nomes de destaque? Que conselhos daria a eles? CROWL: Muitos compositores não consideram isso importante. Contentam-se em ser epígonos de “escolas” estabelecidas, ou escrevem cada vez num estilo diferente. Particularmente, sempre tive horror a isso. Acho que cada compositor deveria achar a sua própria linguagem. Busquei isso desde o início. Não sosseguei enquanto não comecei a identificar o que era meu e o que era dos outros na minha própria música. Comecei a colocar os epígonos de lado. Como já
mencionei antes, tomei por modelo aqueles compositores que se adequavam àquilo que buscavam. Embora não goste da definição de pós-modernista, pois acho que não quer dizer muita coisa, vejo-me numa situação onde o resultado final do discurso musical é o que interessa, e não como ele foi construído. Importa-me como a música soa e estimula a imaginação do ouvinte, não como está escrita. Acho muito cômodo ficar reclamando e não fazer nada. Há no Brasil, ainda, um sonho romântico do gênio incompreendido que um dia será descoberto. Os compositores adoram se esconder atrás disso, em vez de procurarem espaço para a sua música. A música de concerto nunca vai ocupar um lugar semelhante ao da música popular. Nem aqui nem em nenhum lugar do mundo. Mais uma vez repito, as orquestras e intérpretes individuais só executarão obras de compositores brasileiros vivos se tiverem acesso ou forem obrigados num primeiro momento. Tenho conseguido muito espaço junto a intérpretes e algumas orquestras. Mantenho contato com grupos no exterior também. Procuro acompanhar tudo que acontece com a minha música. Não acho as coisas no Brasil tão impossíveis. Tenho excelentes intérpretes aqui em Curitiba, como as pianistas Leilah Paiva e Clenice Ortigara, o violinista Atli Ellendersen, o clarinetista
Jairo Wilkens, o saxofonista Rodrigo Capistrano, além de outros em várias partes do Brasil, como no Rio, Porto Alegre, Manaus e São Paulo, como no caso do regente Roberto Duarte. Acho que apontar caminhos seria um pouco pretensioso, mas creio que buscar a própria linguagem é caminho interessante. Isso só se consegue naturalmente, com muita prática e pesquisa. É preciso compor sempre, ouvir muita música, interessar-se por outras artes. Enfim, fazer parte do mundo contemporâneo, com todas as suas benesses e mazelas. Sinto na maioria dos compositores entre 20 e 40 anos, uma atitude muito conservadora em relação à criação. Tudo que tenho ouvido é repetição de velhos modelos acadêmicos, sejam eles românticos ou modernos (século XX). Pois, considero que compor como Webern, Schönberg, Stravinsky, Boulez, Ligeti ou Berio, tão acadêmico quanto fazê-lo à maneira de Tchaikovski, Franck, Brahms, ou mesmo Prokofiev ou Debussy. Prefiro não citar nomes de jovens compositores, mas diria para eles que compor é mais importante do que lecionar composição. Sei que a sobrevivência só é possível no Brasil através do magistério, mas a criação deve vir sempre em primeiro lugar, como uma religião. Porque senão, ensinar o quê?
IRINEU FRANCO PERPÉTUO Jornalista, colaborador do jornal Folha de S. Paulo e da revista Concerto, correspondente no Brasil da revista Ópera Actual (Barcelona) e secretário da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea. É co-autor, com Alexandre Pavan, de Populares & Eruditos (Editora Invenção, 2001).
147
Fernando Velloso e a poética da matéria “Pintar é tornar sensível uma superfície que se limitou” FERNANDO VELLOSO, 1963
D
esta maneira, e bem no centro do turbilhão do movimento de renovação das artes plásticas no Paraná, assim se exprimia o pintor Fernando Velloso, artista e crítico, homem de grande sensibilidade e de conhecimentos teóricos e técnicos, que liderou o início da vanguarda curitibana, principalmente daquela que vai se interessar pela problemática da matéria que é a substância sensível da arte contemporânea. Fernando Velloso é curitibano de família tradicional da capital do Estado do Paraná e de quem se esperava fosse um sucessor do pai político e advogado. Mas seus cadernos de escola, quando ainda criança, não lhe deram outra opção; a vontade de ser artista estava nele desde a tenra idade. Ultrapassando uma tendência inicial expressionista, importante na sua formação pictórica, pois é ela que corresponde às suas inquietudes de jovem estudante da Escola de Belas Artes do Paraná,
na cidade de Curitiba, como aluno do italiano Guido Viaro, a continuidade de sua formação se deu na Europa, na França precisamente, quando freqüentou as aulas e as discussões teóricas em torno da arte contemporânea na Academia de André Lhote. É o próprio Lhote quem define sua tendência matérica: mon ami le pâtissier brésilien (“meu amigo confeiteiro brasileiro”, isto é, aquele que faz de tudo com a massa), o artista da Poética da Matéria, usando um termo de Argan. Em Paris, após a Segunda Guerra Mundial, vivia-se os momentos de retomada do Cubismo, Picasso era o líder da “jovem arte européia” e o movimento cubista passava por suas revisões. Sem esquecermos a influência do existencialismo de Sartre, a decomposição cubista era mais explosiva que analítica, a realidade que ela queria mostrar fluía de uma consciência dilacerada e, em idéia, já era abstrata. 149
A sua abstração possibilita o fazer artesanal, Lhote havia participado da Exposição Section d’Or em 1912, e estava engajado nas discussões da especificidade da pintura francesa, essencialista e cartesiana dentro do conceito de uma “volta à ordem”, e estas concepções, aliadas à lógica e ao rigor do fazer artístico, é que determinavam o método de sua Academia fundada em 1922 e pela qual passaram vários artistas brasileiros. Do conhecimento técnico de preparo dos materiais pictóricos (a “cozinha” da pintura, como Velloso a chama), apreendido entre os acadêmicos no Paraná, foi reelaborado nessa reinvenção pós-cubista, ao mesmo tempo material e formal da pintura, e com um aprofundamento sobre o “métier” do pintor. Ser pintor, esta era a vontade do artista; e ser pintor é saber manusear com autoridade os materiais pictóricos, dominá-los, dominar a matéria, dominar o espaço compositivo do quadro: sensibilizar a superfície escolhida. Fernando Velloso tem a consciência clara que o espaço da tela não é um espaço de ilusão, ele é espaço de inscrição, de linguagem, de transformação da natureza vivida e sentida em pintura. Pintura para ele não é fazer o efêmero, o perecível; pintura deve ter qualidade e durabilidade e também muito trabalho, para possibilitar que todas as suas sensações (uma herança de Cézanne) possam entrar no quadro em forma de luz, de cor e de espaço e, com inteligência e sensibilidade, tentar o absoluto: “que o quadro seja bem pintado”, dirá Lhote nas suas “lnvariantes plásticas”. O que lhe interessou de Lhote não foi o “cubificar” as aparências, mas a lição de que o cubismo é espaço, que é espaço complexo, descontínuo e a materialização de um espaço novo que foi sentido por Braque e Picasso. É subversão do sistema perspectivo, mas não deixando de confirmar que este espaço que o artista quer planificar é oval, é côncavo, é barroco. Da herança racional do pós-cubismo lhe resta
150
a estrutura do quadro, o espaço plano onde figura e fundo têm uma mesma importância; do trabalho sobre a matéria é que proporciona esta linguagem dúctil, plástica, impressionável, suscetível de todas as transformações e metamorfoses, na busca de materiais e texturas, onde o volume é real e não uma ilusão, resultado da manipulação das tintas e cores, e que conta também com apropriações de fragmentos do universo do pintor, estranhos à pintura mesma. Diferente do cubismo que se apropriava de porções de realidade, momentos do cotidiano, e colava no quadro, as apropriações do Fernando Velloso são plásticas, são texturas, são massas pictóricas, que se, por um lado, nos atraem pela sua sensualidade, estão ali também para exaltar um desenho que descreve analiticamente objetos, arquiteturas e volumes do quadro. As rendas, escolhidas criteriosamente, não lembram tempos passados, mas texturas sentidas, rugosidade que se opõe ao liso, sentidos no toque dos dedos sobre as diversas superfícies da própria natureza, uma natureza não somente ótica, mas também háptica (em Riegl, espaço dominado pelos corpos, sensível), e que às vezes levam também ao observador esta vontade de tocar na obra como se ela fosse a própria natureza. O não figurativismo de suas colagens não elimina a emotividade naturalista da forma, da textura e da cor. Não há perspectiva, pois o quadro é plano, mas há espaço determinado pela matéria e pela cor. Tempo e espaço são duas grandes conquistas da arte moderna; o tempo para Fernando é estável, duradouro, é o tempo necessário para se ler o quadro, para atravessá-lo com o olhar de um lado para o outro, perscrutar todos os detalhes, nuanças de cores e volumes, mas jamais para tentar atingir o objeto. O objeto, se ele existe, está preso, ou mesmo transformado, no espaço. São suas obsessões formais. Não há objetos aparentes na obra do Velloso;
sem a precisão requerida pelo objeto como nos explica Klee, eles podem ser recordações, reminiscências, fragmentos da natureza que ficaram guardados na memória do pintor e que ele retransforma em pintura. “Matéria é memória”, escreveu Henri Bergson. Suas pinturas são abstrações, pois a decepção com o ritual cubista de Lhote, com o seu dogmatismo pseudo-cientificista, o fez cair na abstração, mas não numa abstração hermética. A sua figura nunca está muito longe − mas ele não é figurativo em forma alguma. Pode ser figural conforme a concepção de Lyotard − com esforço, podemos ver a natureza do Paraná, as construções no espaço, os planos que se entrecortam, a cor, o dinamismo das formas transpassadas pelos elementos geométricos. Há tempos ele mesmo as denominou (por influências externas) de Florestas petrificadas, Espectros da floresta, mas agora suas composições se aproximam do que disse Klee, das reminiscências: Imagens resgatadas no tempo, Enigmas decorrentes, Formas em relação e confronto, Fragmentos colhidos no caminho... A sua abstração possibilita o fazer artesanal, sem a precisão requerida pelo objeto; ele acentua o prazer do fazer manual como que negando Duchamp na sua impossibilidade da pintura. Com Fernando Velloso se afirma de novo que é possível ser pintor de tela e tinta, de manipulação de materiais e instrumentos, da exaltação da vontade de pintar. As sua formas sensíveis, definidas como exercícios de racionalização na bidimensionalidade da tela, são barrocas, como é barroco também o tratamento matérico dessas formas; um atavismo brasileiro ou o resultado do processamento da forma pela matéria? Quando Kandinsky, rompendo com a perspectiva renascentista, ovalisou o espaço de suas pinturas, ele saiu da figuração. O barroco moderno de Fernando
Velloso é definido por esta espacialidade indefinida que é, ao mesmo tempo, resultado da ação do artista, da gestualidade dramática do pintor a caminho da abstração. Velloso é ainda o grande pintor, e quer ser considerado como tal. Sua obra é densa, pensada, produzida lentamente com a reflexão do teórico e do crítico que ele é; nada está ali por puro acaso, tudo foi
analisado e confirma a sua direção, a de continuar a sua busca da idéia de abstração; abstração enquanto organização do espaço, de sensação da dimensão. O que está em suas telas é a cor e a textura da nossa matéria, é a cor e a textura de nossa vegetação, de nossa terra e de nosso céu, mas, antes de mais nada, o que está na tela é matéria pictórica, é a solução de um problema dado para e pelo pintor. As fantasmagorias desses seres-naturezas são frutos de nossa imaginação.
FERNANDO A. R. BINI Professor de História da Arte.
151